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TJSC Jurisprudência Catarinense
Processo: 0008712-37.2018.8.24.0023 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Hildemar Meneguzzi de Carvalho
Origem: Capital
Orgão Julgador: Primeira Câmara Criminal
Julgado em: Thu Jan 30 00:00:00 GMT-03:00 2020
Juiz Prolator: Renato Mastella
Classe: Recurso em Sentido Estrito

 


Citações - Art. 927, CPC: Súmulas STJ: 500

 


Recurso Em Sentido Estrito n. 0008712-37.2018.8.24.0023, da Capital

Relatora: Desembargadora Hildemar Meneguzzi de Carvalho

   RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO PELO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA E FEMINICÍDIO, FURTO E RESISTÊNCIA (ART. 121, § 2º, INCISOS IV E VI, ART. 155, § 1º E 329, NA FORMA DO ART. 69, TODOS DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA DE PRONÚNCIA. RECURSO DEFENSIVO. PRELIMINAR DE NULIDADE. PRETENDIDA IMPRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. INDÍCIOS PROBATÓRIOS ACERCA DA AUTORIA E MATERIALIDADE PRESENTES. TESES ANTAGÔNICAS QUE DEVEM SER LEVADAS À JULGAMENTO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE. REQUERIMENTO DE AFASTAMENTO DAS QUALIFICADORAS DO MOTIVO DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA E FEMINICÍDIO. INVIABILIDADE. PROVAS CARREADAS QUE DEMONSTRAM QUE O RECORRENTE TERIA PRATICADO O DELITO ENQUANTO A VÍTIMA DORMIA, MEDIANTE O USO DE UMA BARRA DE FERRO CONTRA SUA CABEÇA. INCIDÊNCIA DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO PARA VÍTIMA TRANSGÊNERO. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA NORMA PENAL. PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA QUE OPINOU PELA MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

           Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Em Sentido Estrito n. 0008712-37.2018.8.24.0023, da comarca da Capital Vara do Tribunal do Júri em que é Recorrente Júnior Everton Menegildo e Recorrido Ministério Público do Estado de Santa Catarina.

           A Primeira Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e negar-lhe provimento. Custas legais.

           O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Paulo Roberto Sartorato, com voto, e dele participou o Excelentíssimo Senhor Desembargador Carlos Alberto Civinski.

           Funcionou como representante do Ministério Público, a Excelentíssima Senhora Procuradora de Justiça Dra. Heloísa Crescenti Abdalla Freire.

           Florianópolis, 30 de janeiro de 2020.

Hildemar Meneguzzi de Carvalho

Relatora

 

           RELATÓRIO

           Denúncia (fls. 1/4): o Ministério Público ofereceu denúncia contra Júnior Everton Menegildo, como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, incisos IV e VI, c/c o § 2º-A, inciso I, art. 155, § 1º e no art. 329, caput, todos do Código Penal, na forma do art. 69, também do Código Penal, em razão dos seguintes fatos descritos na peça acusatória:

    Fato n. 01 - Do crime de homicídio duplamente qualificado consumado

    No dia 06 de junho de 2018, por volta das 5 horas da madrugada, no interior do apartamento n. 202, situado na Rua José Daux, nº 73, Canasvieiras, nesta Cidade de Florianópolis-SC, o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO, com manifesto animus necandi, mediante recurso que dificultou a defesa da ofendida e em condições compatíveis com feminicidio, desferiu diversos golpes com uma barra de ferro na face de Gustavo Roberto Bordinhon, conhecido pelo nome social de ''Kamylla Roberta'', provocando, assim, as lesões descritas no laudo cadavérico às fls. 152/161, as quais foram a causa efetiva de sua morte.

    O denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO mantinha um relacionamento amoroso com a vítima ''Kamylla Roberta'' (Gustavo Roberto Bordinhon).

    Ocorre que, por motivos ainda desconhecidos, o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO, dando propósito a vazão homicida e aproveitando-se do relacionamento que mantinha com a ofendida, muniu-se de uma barra de ferro (vide imagem à fl. 148) e, no interior do apartamento da vítima, passou a desferir contra esta diversos golpes com referido instrumento, espancando-a e acertando-a na cabeça, determinando seu óbito.

    Cabe salientar que o homicídio foi praticado mediante recurso que dificultou a defesa da vítima ''Kamylla Roberta'' (Gustavo Roberto Bordinhon), haja vista que o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO, aproveitou-se das relações afetivas que mantinha com a vítima, atacando-a no interior de sua própria moradia, em horário de repouso noturno, impossibilitando-a de esboçar qualquer reação, haja vista que foi surpreendida com a ação desmedida e inesperada do assassino.

    Por fim, a prática delituosa configurou, também, o feminicídio, envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher ou pessoa em condição similar, na forma do art. 5º, inciso II, da Lei 11.340/06, já que o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO praticou o crime contra pessoa em condição similar a mulher por razão da condição de sexo feminino (transexual), aproveitando-se da relação doméstica que mantivera com a vítima ''Kamylla Roberta'' (Gustavo Roberto Bordinhon), sua namorada e companheira.

    Fato n. 02 - Do crime de furto majorado

    Mas não foi só!

    Logo, após ceifar a vida da ofendida, na tentativa de frustrar-se da responsabilidade do crime perpetrado, o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO, durante repouso noturno, subtraiu para si o veículo Ford/Ka, placas IIV-7228, de posse da vítima ''Kamylla Roberta'' (Gustavo Roberto Bordinhon).

    Fato n. 03 - Do crime de resistência

    Posteriormente, depois de se evadir para a região de Itapema/SC, no dia 10 de julho de 2018, na Rua Novecentos e Dois, Alto São Bento, o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO foi abordado por policiais militares.

    Ocorre que, durante a abordagem policial, o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO, ofereceu resistência à ordem da prisão, insurgindo-se contra a ação legal dos policiais militares Marcos Elias Mix e Fernando Poletto Cavalheiro da Silva, motivo pelo qual estes se obrigaram a fazer uso necessário e moderado da força com o objetivo de detê-lo.

    Assim agindo, o denunciado JÚNIOR EVERTON MENEGILDO infringiu o disposto no art. 121, § 2º, incisos IV e VI, c/c o § 2oA, inciso I; no art. 155, § 1º; e no art. 329, caput, todos do Código Penal; na forma do art. 69, também do Código Penal Brasileiro.

           Sentença de Pronúncia (fls. 614/622): o Juiz de Direito Renato Mastella pronunciou Júnior Everton Menegilson, a ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, IV e VI do Código Penal, e c/c § 2°-A, I, art. 155, §1°, na forma do art. 69, ambos do Código Penal.

           Recurso em sentido estrito de Júnior Everton Menegildo (fls. 643/652): em suas razões recursais, o recorrente alegou que não existem provas acerca da autoria delitiva, devendo ocorrer, portanto, a despronúncia.

           Asseverou que a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima não está demonstrada nos autos.

           Argumentou que a vítima era do sexo masculino, mas do gênero feminino, devendo ocorrer o decote da qualificadora do feminicídio.

           Requereu, pois, a despronúncia. Alternativamente, postulou pelo decote das qualificadoras do recurso que dificultou a defesa da vítima e do feminicídio.

           Contrarrazões do Ministério Público (fls. 657/674): o Ministério Público impugnou as razões recursais do recorrente, ao argumento de que os indícios de autoria e materialidade encontram-se evidenciados nos autos.

           Asseverou que as qualificadoras da surpresa e feminicídio estão demonstradas no caderno processual.

           Requereu o conhecimento e desprovimento do recurso interposto.

           Lavrou parecer pela Douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Odil José Cota, o qual opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso (fls. 681/689).

           Este é o relatório.

 

           VOTO

           Trata-se de recurso em sentindo estrito interposto por Júnior Everton Menegildo, contra a sentença de pronúncia que o pronunciou a ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, IV e VI do Código Penal, e c/c § 2°-A, I, art. 155, § 1°, na forma do art. 69, ambos do Código Penal.

           1 - Da admissibilidade

           O recurso preenche os requisitos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, motivo pelo qual é conhecido.

           2 - Do mérito

           2-1 Da despronúncia

           A defesa pretende a despronúncia, sob o fundamento, em síntese, de que não há provas nos autos que demonstrem a participação do recorrente no homicídio qualificado.

           Razão não lhe assiste.

           Inicialmente, convém ressaltar que o art. 413 do Código de Processo Penal dispõe que "O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação".

           Salienta-se, outrossim, que o disposto no art. 413 do Código de Processo Penal aponta que o magistrado ao efetuar a sentença de pronúncia, deve estar convencido acerca da materialidade do crime, bem como sobre os indícios de autoria deste.

           Sobre o tema, colhe-se da doutrina de Fernando da Costa Tourinho Filho:

    Dês que haja prova da materialidade do fato e indícios suficientes de que o réu foi o seu autor, deve o Juiz pronunciá-lo. A pronúncia é decisão de natureza processual (mesmo porque não faz coisa julgada), em que o Juiz, convencido da existência do crime, bem como de que o réu foi seu autor (e procura demonstrá-lo em sua decisão), reconhece a competência do Tribunal do Júri para proferir o julgamento (Código de processo penal comentado. Saraiva. 14 ed. São Paulo, 2012. v. 2, p. 80).

           Ainda, destaca Hermínio Alberto Marques Porto:

    A classificação penal apresentada pela petição inicial deve merecer da pronúncia aprofundado estudo. O Juiz da pronúncia, aceitando ou afastando em parte o quadro classificatório debatido, dará os motivos de acolhimento e de repulsa. Na fundamentação, a valoração das provas, envolvendo indícios de autoria relacionados com a culpabilidade, é expressada nos limites de uma verificação não aprofundada, mas eficiente à formalização de um esquema classificador. Nem só ao rebater os argumentos das partes, como ao oferecer o seu convencimento, o Juiz na pronúncia, para não ultrapassar o permissivo à decisão interlocutória de encaminhamento da imputação, e para não influir, indevidamente, no espírito dos jurados, deve ter o comedimento das expressões, para que não sejam ultrapassados os limites de decisão marcantemente de efeitos processuais. Somente assim receberão os jurados a pronúncia, como uma esquematizada formulação de fontes do questionário, não como decisão que tenha por afastadas, porque absolutamente inviáveis, a absolvição, a impronúncia, a desclassificação, possíveis na fase em que foi proferida, e também como soluções que podem inspirar a decisão do Conselho de Sentença; assim, a decisão de pronúncia tem somente por admissível a acusação, sem sobre ela projetar um definitivo juízo de mérito" (Júri: procedimentos e aspectos do julgamento. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75).

           Neste sentido, colhe-se da doutrina de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alecar:

    [...]

    Se, de plano, o juiz vê que não há possibilidade de condenação válida, mecê da insuficiência probatória, não deverá pronunciar o acusado. É o que dispõe explicitamente o art. 414, CPP, ao dizer que "não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado", ressalvando que, "enquanto não ocorrer extinção da punibilidade poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova " (parágrafo único). Nota-se que vigora, nesta fase, a regra do in dubio pro societate: existindo possibilidade de se entender pela imputação válida do crime contra a vida em relação ao acusado, o juiz deve admitir a acusação, assegurando o cumprimento da Constituição, que reservou a competência para o julgamento de delitos dessa espécie para o tribunal popular (Távora, Nestor. Alencar, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal, 10ª ed. Rev. E ampl., Juspodivm, Salvador, 2015. p. 1128).

           O Superior Tribunal de Justiça não destoa:

    A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a decisão de pronúncia encerra mero juízo de admissibilidade da acusação, sendo exigido tão somente a certeza da materialidade do crime e indícios suficientes de sua autoria. Nesta fase processual, de acordo com o art. 413 do Código de Processo Penal, qualquer dúvida razoável deve ser resolvida em favor da sociedade, remetendo-se o caso à apreciação do seu juiz natural, o Tribunal do Júri (HC n. 223.973, Mina. Marilza Maynard - convocada do TJSE, j. 27-6-2014).

           Esta Corte segue o mesmo entendimento:

    A pronúncia é mero juízo de admissibilidade; certa a existência do crime, toda e qualquer discussão que se distancie dos indícios da autoria (CPP, art. 408), deve ser feita perante o Tribunal do Júri. A liminar absolvição, portanto, em sede provisional, exige cabal demonstração da excludente de criminalidade ou causa de isenção, sem o que não pode ser admitida' (Recurso criminal n. 03.018784-7, de Itaiópolis, rel. Des. Irineu João da Silva)" (Recurso Criminal n. 2015.029774-0, Des. Jorge Schaefer Martins, j. 2-7-2015).

    APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO, FURTO QUALIFICADO TENTADO E COAÇÃO NO CURSO DO PROCESSO. DECISÃO DE IMPRONÚNCIA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PRONUNCIAR OS RÉUS. ACOLHIMENTO. DIANTE DA PRESENÇA DE PROVAS DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA, A DECISÃO DE PRONÚNCIA É MEDIDA QUE SE IMPÕE. EVENTUAIS DÚVIDAS E VERSÕES CONFLITANTES QUE DEVEM SER DIRIMIDAS PELO CONSELHO DE SENTENÇA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA SOBERANIA DO TRIBUNAL DO JÚRI E IN DUBIO PRO SOCIETATE. CRIMES CONEXOS DE FURTO TENTADO E COAÇÃO NO CURSO DO PROCESSO. INTELIGÊNCIA DO ART. 78, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL POPULAR (Apelação Criminal n. 2012.006269-8, Des. Volnei Celso Tomazini, j. 8-10-2013).

           Frisa-se que esta Corte possui o entendimento de que se houver duas versões sobre os fatos em discussão, o Tribunal do Júri mostra-se competente para dissolver a controvérsia, motivo pelo qual cabe ao juízo de primeiro grau, nesta hipótese, pronunciar o agente.

           Neste sentido:

    RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DUAS TENTATIVAS DE HOMICÍDIO QUALIFICADO, UMA PELO MOTIVO FÚTIL (CP, ART. 121, § 2º, II, C/C O 14, II) E A OUTRA EM RAZÃO DE O DELITO SER COMETIDO PARA ASSEGURAR A EXECUÇÃO DE OUTRO CRIME (CP, ART. 121, § 2º, V, C/C O 14, II); E LESÃO CORPORAL (CP, ART. 129, CAPUT). DECISÃO DE PRONÚNCIA. RECURSO DO ACUSADO. [...]

    2. Havendo duas versões sobre os fatos em debate, uma delas prestando-se a agasalhar a tese acusatória, correta é a decisão de pronúncia que remete o julgamento da matéria ao Tribunal do Júri, a quem compete soberanamente o exame aprofundado da prova relativa aos crimes dolosos contra a vida. (Recurso em Sentido Estrito n. 0005162-23.2017.8.24.0038, de Joinville, rel. Des. Sérgio Rizelo, j. em 10-4-2018).

    RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO CONSUMADO QUALIFICADO E TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO, AMBOS POR PERIGO COMUM E RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA (CP, ARTS. 121, § 2º, III E IV, E 121, § 2º, III E IV, ESTE C/C O 14, II). RECURSO DE UM DOS ACUSADOS. PLEITO DE IMPRONÚNCIA. INVIABILIDADE. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA QUE SÃO EXTRAÍDOS DOS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO AMEALHADOS EM AMBAS AS FASES PROCEDIMENTAIS. POSSIBILIDADE DE O ACUSADO TER PARTICIPADO DOS CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA DESCRITOS NA DENÚNCIA. RELATOS DAS TESTEMUNHAS QUE INDICAM O ACERTO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA, NOS MOLDES DO ART. 413 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

    Satisfeitos os requisitos do art. 413 do Código de Processo Penal e havendo versões antagônicas a respeito dos fatos, uma delas prestando-se a agasalhar a tese acusatória, correta é a decisão de pronúncia que remete o julgamento da matéria ao Tribunal do Júri, a quem compete soberanamente o exame aprofundado da prova relativa aos crimes dolosos contra a vida, nos termos da Constituição Federal de 1988 (Recurso em Sentido Estrito n. 0001217-07.2017.8.24.0045, de Palhoça, rel. Des. Sérgio Rizelo, j. Em 6-3-2018).

           Com efeito, analisando detidamente o caderno processual, nota-se que a materialidade do crime está consubstanciada pelos boletins de ocorrência (fls. 28/29 e 109/110), relatório final de investigação (fls. 182/185), laudo papiloscópico (fls. 147/155), laudo pericial cadavérico, que atestou que a vítima Gustavo Roberto Bordinhon, com nome social de Kamylla Roberta, a qual sofreu traumatismo por energia de ordem mecânica, decorrente de instrumento pérfuro-contundente, como causa da sua morte (fls. 156/165).

           Os indícios de autoria do crime foram demonstrados por meio das provas testemunhais, além do laudo papiloscópico de fls. 147/155.

           Segundo narrado pelo Ministério Público na exordial, no dia 6-6-2018, por volta das 5 horas da manhã, no apartamento n. 202, situado na Rua José Daux, n. 73, bairro Canasvieiras, Florianópolis-SC, o recorrente teria ceifado a vida de Gustavo Roberto Bordinhon, que possuía o nome social de "Kamylla Roberta", mediante o uso de uma barra de ferro contra a face daquela, causando-lhe a morte, consoante o laudo pericial cadavérico (fls. 156/165).

           O recorrido narrou na peça vestibular, ainda, que o recorrente no dia dos fatos acima sublinhados, teria subtraído para si, o veículo Ford/Ka, placas IIV-7228, que pertencia à vítima Gustavo Roberto Bordinhon, com nome social de Kamylla Roberta.

           Consta na denúncia que no dia 10-7-2018, o recorrente teria sido abordado por policiais militares, resistindo à prisão.

           Nesse viés, a testemunha Luiz Alberto de Oliveira, com o nome social de Juliane Oliveira Vaz, ponderou em juízo (fls. 303/304):

    Que era amiga e colega de trabalho da vítima. Contou que conheceu o acusado mais ou menos um mês antes do fato acontecer, bem como se relacionou com o réu antes dele começar a se relacionar com a vítima, sendo que o acusado chegou a morar com a vítima uns 20 dias antes que ocorrer o crime. Informou que a vítima era casada antes de começar a ter relacionamento com o réu, em razão disso não frequentou muito a casa da vítima. Disse que o réu nunca foi agressivo quando teve relação com ele, apenas era sério, bem como a vítima também nunca foi agressiva com ninguém. Falou que dois dias depois ficou sabendo do crime através de uma policial que trabalhou no caso. Contou que a vítima tinha um carro Ford/Ka e via a vítima usar o carro para trabalhar. Não soube explicar o motivo do crime. Grifos meus.

           A testemunha Marcos Castro Mota asseverou judicialmente (fls. 303/304):

    Que se relacionou com a vítima por cerca de três anos, mas não chegaram a morar juntos. Falou que após o término do relacionamento continuou tendo contato com a vítima, tanto que, um mês antes do crime, foi até à casa da vítima e viu o acusado, mas em seguida já foi embora. Contou que no dia do fato, na parte da manhã, esteve na casa da vítima, pois iria levar dinheiro para ajudar a pagar o aluguel. Contudo, ao chegar no local viu o carro da vítima, mas não conseguiu contato, vez que ela não retornou a ligação e nem abriu a porta, sendo assim foi embora. Esclareceu que ficou sabendo do crime um dia depois do ocorrido através do Facebook. Dessa forma, foi de novo até o apartamento da vítima, onde teve informação da Delegada e da investigadora que teria sido o ex-namorado.

           O Policial Militar Israel Teixeira sublinhou em juízo (fls. 303/304):

    Que no dia dos fatos foi acionado para atender uma ocorrência de homicídio, tendo se deslocado até o local. Contou que ao chegar no local foi recebido por Tânia, a qual informou que entrou no apartamento em que a vítima era inquilina juntamente com o dono do imóvel, pois não conseguia contato via telefone com a vítima desde o dia anterior, e, ao entrarem, viram o corpo da vítima. Disse que no local havia uma barra de ferro e o corpo da vítima, que estava com afundamento de cranio na face, bem como havia muito sangue na cama, na parede e no rosto da vítima. Falou que em contato com a Tânia, ainda no local do crime, já se suspeitou do ex-companheiro da vítima que se chama Júnior, tendo em vista que estavam sempre juntos e sentiram falta do carro da vítima, um Ford/Ka.

           A Delegada de Polícia Salete Mariano Teixeira destacou sob o crivo do contraditório (fls. 303/304):

    Que participou das investigações, porém não foi até o local do crime. Disse que a vítima morava junto com Tânia, a qual era dona do local, sendo que a vítima também tinha função de arrecadar o dinheiro dos programas e passar para Tânia. Contou que um dia antes do crime, Tânia não conseguiu contato com a vítima para cobrar o dinheiro que a vítima teria arrecadado, sendo assim foi até o apartamento, momento em que viu Kamylla morta em um colchão no chão. Falou que colheu o depoimento de Tânia, onde comunicou que o acusado e a vítima tinham um relacionamento e chegaram a morar juntos, ainda confirmou a suspeita de que o crime foi cometido por ele, tendo em vista que o acusado se evadiu do local após o crime com o carro da vítima, um Ford/Ka, sendo que o carro foi visto por testemunhas na manhã do crime, vindo a ser localizado em Chapecó em posse do acusado. Esclareceu que uma testemunha falou que o acusado era ciumento, beijava em público e não tinha pudor nenhum em relação ao preconceito. Disse que foi feito laudo pericial em uma barra de ferro que estava ao lado do corpo da vítima, o qual foi comprovado que o objeto foi usado no crime e constava impressão digital do acusado. Contou que interrogou o acusado na fase policial, o qual informou que tinha comprado o carro de Kamylla uns dias antes, ainda negou que namorou com a vítima, alem de negar que cometeu o crime. Esclareceu que o acusado bloqueou as amigas de Kamylla que tentavam contato com ele, pois estavam preocupadas, já que não conseguiam contato com a vítima e sabiam que os dois andavam juntos. Contou que acusado pode ter matado em razão de a vítima ainda trocar mensagens com o ex-namorado. Grifos meus.

           O Policial Militar Marcos Elias Mix frisou em juízo (fl. 340):

    Que foi acionado porque receberam informações de que teria uma casal cometendo furtos em supermercados, sendo que foram informados da placa do carro em que estava o casal. Contou que ao averiguar a placa do veículo, verificou que constava registro de furto e roubo, bem como o autor do crime estava com mandado de prisão ativo por roubo e latrocínio. Falou que diante das informações, começaram a fazer rondas na região, já que o autor estaria cometendo furtos, sendo localizado na rua 901. Disse que ao fazer a abordagem, o acusado resistiu à prisão, e após foi verificado que o preso seria o autor do crime de roubo cometido em Florianópolis e que estava com o mandado de prisão ativo. Grifos meus.

           As Policiais Civis Regina Régis e Juliana Driessen Moreira prestaram declarações em juízo no mesmo sentido da Delegada de Polícia Salete (fls. 303/304 e 343).

           Na fase inquisitorial, Marcos Aurélio Lopes, com nome social Tânia Lopes, asseverou (fls. 16/18):

    [...] Que, a vítima Kamylla Roberta (seu nome social) residia com a depoente há cinco anos e tinha como função atualmente de secretária, no qual arrecadava as diárias de seis travestis que residiam na casa da depoente; Que, a vítima tinha um apartamento alugado para atender os clientes, o qual estava localizado em cima da Padaria Manguchi, situado em canasvieiras, local onde kamylLa foi morta; Que, a depoente acrescenta que este apartamento era exclusivamente de Kamylla para atender a seus clientes; Que, Kamylla era muito individualista por isso alugou este apartamento, para utilizar somente para si; Que, Kamylla era pessoa de confiança da depoente, sendo que todo dia por volta das 11:00 da manha a vítima leva o dinheiro arrecadado das diárias e o pão para tomarem café juntas, no endereço da depoente Rua Enio Machado de Andrade, n. 9, Vargem do Bom Jesus; Que, a depoente tinha conhecimento que a vítima estava namorando aproximadamente uma semana com um indivíduo conhecido por Júnior, o qual também frequentava a casa da depoente, e já havia namorado Juliane (nome social); Que, a depoente já havia esclarecido para Júnior das regras da casa e que Júnior descumpriu quando se envolveu com Kamylla, oportunidade que a depoente expulsou, acreditando que foi no dia 31 de maio do corrente ano, e Kamylla acolheu Júnior em seu apartamento alugado, contra a vontade da depoente; Que, inclusive que informa que chegou a discutir com Kamylla no sábado dia 02 de junho, por conta desse fato, sendo que Kamylla disse a depoente que ninguém tinha nada a ver com a vida pessoal dela; Que, a depoente informa que segunda e terça-feira Kamylla levou a diária e começou a fazer sua mudança onde passaria morar definitivamente no apartamento localizado em cima da Padaria; Que, a depoente não se opôs porque Kamylla continuou fazendo o seu trabalho normalmente, alegando que a depoente não tinha nada a ver com a vida pessoal dela; Que, no dia 06 de junho quarta-feira Kamylla não trouxe o dinheiro e não apareceu mais na casa da depoente, fato que achou estranho porque Kamylla nunca deixou de fazer contato com a depoente e quando mandava mensagem pelo whatsapp, e quando mandava uma mensagem Kamylla respondia no máximo dentro de relacionamento de Kamylla com Junior, fez contato com ele várias vezes, oportunidade em um dessas sugeriu para a depoente e ele fossem até a casa de Kamylla para arrombarem a porta; Que, Junior respondia que em tese estava tudo bem com Kamylla e que por volta das 16:00 horas de quarta-feira, bloqueou a depoente no whatsapp; Que, a depoente no dia seguinte, ou seja, dia 07 de junho foi até o endereço da proprietária do imóvel alugado por Kamylla para ver se ela tinha uma chave reserva e assim entrar no apartamento; Que, por volta da 13:00 do dia 07 de junho a depoente e Maria proprietária do imóvel entraram no apartamento e viram ela deitada no chão, sobre um colchão e quando viu aquela cena, preferiu não observar os detalhes de como ela estava, não sabendo informar se estava sangrando, se estava enforcada, o que realmente tinha acontecido com ela, mas percebeu que do lado do corpo dela estava uma barra de ferro de equipamento de ginástica; Que, questionada se a porta estava arrombada afirma que não; Que, ciente de que a depoente possuia um veiculo Ford/Ka de cor verde escuro, licenciado em Ibirama/SC, não sabendo informar a placa, no qual comprou aproximadamente 6 meses atrás, perguntou para os funcionários da padaria se haviam visto o carro de Kamylla nos últimos dias, sendo que responderam que haviam visto o carro estacionado na rua em via pública, em frente a padaria ou mini mercado, onde a vítima costumava deixar; Que, esclarece que o veículo já estava totalmente quitado, porém a vitima não havia transferido para o nome dela; Que, depois de ter visto a subtração do veículo e sua amiga morta imaginou que Júnior poderia estar envolvido na morte dela, "se não foi ele, sabe quem foi"; Que, logo em seguida acionou a PM que chegou no local, isolou e posteriormente a Delegacia de Homicídio com IGP compareceram no local, oportunidade que apreenderam a barra de ferro para perícia; Que, a depoente após a retirada da vitima e da perícia a depoente sentiu falta do dinheiro de Kamylla referente das diárias, cerca de R$ 1.200, R$ 300,00 do bolo que iria ajudar na festa da religião, R$ 500,00 do programa que havia feito recentemente, no ultimo dia que viu ela que foi na terça-feira 05 de junho quando deixou a depoente em casa; Que, questionada afirma que a ultima vez que conversou com Kamylla pelo whatsapp foi na madrugada de quarta-feira por volta da 02:00 horas da manhã, quando falou assuntos do trabalho; Que, questionada afirma que Kamylla estava apaixonada por Junior e que não sabe dizer o motivo pelo qual Junior possa tela matada; Que, a depoente afirma que Junior e Kamylla fumavam maconha. Grifos meus.

           O recorrente, por sua vez, permaneceu em silêncio em juízo (fl. 582).

           Nesse viés, as provas coligidas nos autos apontam que o recorrente teria sido o autor do crime de homicídio praticado contra a vítima Gustavo Roberto Bordinhon, que possuía o nome social de "Kamylla Roberta".

           Com efeito, nota-se que a testemunha Luiz Alberto de Oliveira (nome social Juliane Oliveira Vaz), sublinhou em juízo que a vítima e o recorrente possuíam um relacionamento amoroso.

           A Delegada de Polícia Salete Mariano Teixeira ponderou eu juízo que o recorrente seria o principal suspeito do crime de homicídio, porquanto o veículo Ford Ka da vítima foi visto na manhã do delito, tendo sido localizado em chapecó em posse daquele. Destacou, ainda, que segundo as investigações, o recorrente seria uma pessoa ciumenta, bem como o laudo pericial teria constatado a impressão digital daquele na barra de ferro utilizada no crime. Concluiu que o recorrente poderia ter matado a vítima em decorrência de ciúmes.

           Ressalta-se que o Policial Militar Marcos Elias Mix ponderou em juízo que realizou a abordagem do veículo Ford Ka da vítima, o qual estava em posse do recorrente na cidade de Chapecó, o qual possuía registro de furto. Asseverou, ainda, que o recorrente teria resistido à prisão.

           Assevera-se, pois, que o laudo pericial papiloscópico constatou que na barra de ferro utilizada no crime haviam impressões digitais do recorrente (fls. 147/155), configurando-se, assim, indícios acerca da autoria delitiva do crime de homicídio.

           Desse modo, em cotejo aos depoimentos prestados em ambas as fases processuais, existem indícios acerca da autoria delitiva do recorrente nos crimes que lhe foram imputados na exordial.

           Nesse viés, é cediço que "O valor do depoimento testemunhal de servidores policiais - especialmente quando prestado em juízo, sob a garantia do contraditório - reveste-se de inquestionável eficácia probatória, não se podendo desqualificá-lo pelo só fato de emanar de agentes estatais incumbidos, por dever de ofício, da repressão penal. O depoimento testemunhal do agente policial somente não terá valor quando se evidenciar que esse servidor do Estado, por revelar interesse particular na investigação penal, age facciosamente ou quando se demonstrar - tal como ocorre com as demais testemunhas - que as suas declarações não encontram suporte e nem se harmonizam com outros elementos probatórios idôneos [...]" (STF, HC n. 73.518, Min. Celso de Mello).

           Outrossim, não se desconhece da versão apresentada pela defesa no sentido de que inexistem indícios suficientes acerca da autoria delitiva em relação ao crime de homicídio.

           Contudo, havendo duas versões nos autos, cumpre ao Conselho de Sentença dirimir as controvérsias e julgar qual delas possui maior veracidade, consoante recente decisão deste Tribunal de Justiça:

    RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA. TENTATIVA DE HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO PELO MOTIVO TORPE E MEDIANTE RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VITIMA (ART. 121, § 2º, I E IV, C/C ART. 14, II, AMBOS DO CP) E CORRUPÇÃO DE MENORES (ART. 244-B, ECA). PRONÚNCIA. RECURSO DAS DEFESAS. PLEITO DE IMPRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. PROVA DA MATERIALIDADE E EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA AUTORIA. DUAS VERSÕES DOS FATOS. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO ISOLADA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. STANDARD PROBATÓRIO COM PREPONDERÂNCIA DE PROVAS ACUSATÓRIAS. SITUAÇÃO QUE DEVE SER DIRIMIDA PELO TRIBUNAL DO JÚRI. RECURSO NÃO PROVIDO NO PONTO. Para a pronúncia não são exigidos os mesmos critérios valorativos dispensados à formação da convicção condenatória. A existência de indícios consistentes, apontando o acusado como autor do delito é suficiente para autorizar o envio do feito à sessão plenária do júri. "A submissão de um acusado a julgamento pelo tribunal do júri pressupõe a existência de lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória, ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas, ainda assim, dependente da preponderância de provas incriminatórias (STF. ARE N.1067392. INFORMATIVO 935). PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE LESÃO CORPORAL (ART. 129, DO CÓDIGO PENAL). AUSÊNCIA DE DOLO E DOMÍNIO DO FATO. ELEMENTOS PROBATÓRIOS INSUFICIENTES PARA AFASTAR O ANIMUS NECANDI. "Havendo dúvida acerca do animus necandi, incumbe ao Tribunal do Júri dirimi-la, procedendo ao exame e à valoração da prova, a teor do cânone inscrito no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea 'd', da Constituição Federal, circunstância que inviabiliza, nesta fase, tanto a desclassificação para lesões corporais seguidas de morte, quanto para homicídio culposo" (Recurso Criminal n. 2011.006930-7, de Ituporanga, rel. Des. Sérgio Paladino, j. em 30-8-2011). ARGUIÇÃO DE COOPERAÇÃO DOLOSAMENTE DISTINTA. EXCEÇÃO À TEORIA MONISTA PREVISTA NO §2º, DO ART. 29 DO CP QUE DEPENDE DE ANÁLISE DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JURI. INVIABILIDADE DE RECONHECIMENTO NESTA FASE PROCEDIMENTAL. PRETENSA DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO PRIVILEGIADO (ART. 121, § 1º DO CÓDIGO PENAL). TESE QUE NÃO PODE SER APRECIADA NESTA ETAPA PROCESSUAL. EXEGESE DO ART. 7º DA LEI DE INTRODUÇÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E O § 1º DO ART. 413 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO NÃO CONHECIDO. As teses de causas especiais de diminuição da pena, como, por exemplo, o homicídio privilegiado (CP, art. 121, § 1.º), devem ser analisadas pelo Tribunal do Júri. (TJSC, Recurso em Sentido Estrito n. 0002699-45.2002.8.24.0035, de Ituporanga, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 31-3-2016). FIXAÇÃO DA PENA BASE NO MÍNIMO LEGAL FORMULADO PELA DEFESA DE LUCAS. RAZÕES DO RECURSO DISSOCIADAS DOS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA. RECURSO NÃO CONHECIDO NO PONTO. AFASTAMENTO DAS QUALIFICADORAS DO MOTIVO TORPE E DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. ART. 121, §2º, I E IV, DO CÓDIGO PENAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE INDICA SER POSSÍVEL A CONFIGURAÇÃO. ANÁLISE VALORATIVA DAS PROVAS QUE COMPETE AO CONSELHO DE SENTENÇA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. "Só podem ser excluídas da sentença de pronúncia as circunstâncias qualificadoras manifestamente improcedentes, uma vez que não se pode usurpar do Tribunal do Júri o pleno exame dos fatos da causa" (STJ, Habeas Corpus n. 162401/GO, rela. Mina. Laurita Vaz, j. 27-3-2012). CORRUPÇÃO DE MENORES. CONTEXTO PROBATÓRIO QUE INDICA A POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE ADOLESCENTE NO CRIME. DELITO FORMAL. DESNECESSIDADE DE PROVA DA EFETIVA CORRUPÇÃO. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA 500 DO STJ. PEDIDO DE REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA E DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. MATÉRIAS JÁ ANALISADAS EM IMPETRAÇÃO ANTERIOR. REITERAÇÃO DE PEDIDO. NÃO CONHECIMENTO NO PONTO. DEFENSOR DATIVO. PEDIDO DE FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE. VERBA QUE SERÁ OPORTUNAMENTE ARBITRADA NO PRIMEIRO GRAU. (TJSC, Recurso em Sentido Estrito n. 0001448-30.2018.8.24.0035, de Ituporanga, rel. Des. José Everaldo Silva, Quarta Câmara Criminal, j. 3-10-2019).

           Esta Câmara não destoa:

    PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. CRIMES TENTADOS E CONSUMADO CONTRA A VIDA E CONEXO DE CORRUPÇÃO DE MENORES. DECISÃO PARCIAL DE PRONÚNCIA. RECURSOS DA DEFESA E DA ACUSAÇÃO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO POR R. E. C. DE J. PLEITO DE IMPRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. INDÍCIOS SUFICIENTES DA MATERIALIDADE E SUPOSTA AUTORIA. INDICATIVOS DE QUE A CONDUTA DO AGENTE FOI PRATICADA, EM TESE, POR MOTIVO TORPE, DECORRENTE DE DISPUTA DE FACÇÕES CRIMINOSAS, E COM EMPREGO DE RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU OU DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA, A QUAL FOI ALVEJADA DE INOPINO ASSIM QUE ABRIU A PORTA DE SUA RESIDÊNCIA. CONTROVÉRSIAS QUE REFORÇAM A NECESSIDADE DE APRECIAÇÃO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. CRIME CONEXO. INDÍCIOS DE AUTORIA. ADOLESCENTE QUE ADMITIU A SUA PARTICIPAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. QUESTÃO A SER SUBMETIDA AOS JURADOS. DECISÃO MANTIDA. - Para a pronúncia, não são exigidos os mesmos critérios valorativos dispensados à formação da convicção condenatória; a existência de indícios consistentes que apontam o réu como autor do delito é suficiente para autorizar o envio do feito à sessão plenária do júri. - As qualificadoras só podem ser afastadas na fase de pronúncia quando totalmente dissociadas das provas colhidas nos autos. - Uma vez que a sentença de pronúncia consiste em um mero juízo de admissibilidade da imputação, na qual a análise do Juízo a quo irá se circunscrever aos indícios de autoria e materialidade, é vedado a ele decidir acerca do mérito dos crimes conexos, sob pena de usurpação da competência do Tribunal do Júri. Precedentes. APELAÇÃO CRIMINAL INTERPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRETENDIDA A PRONÚNCIA DOS ACUSADOS POR TODOS OS DELITOS DESCRITOS NA EXORDIAL ACUSATÓRIA. (I) INDÍCIOS SUFICIENTES DA MATERIALIDADE DA AUTORIA DELITIVAS EM RELAÇÃO AO ACUSADO R. E. C. DE J. PELOS SUPOSTOS CRIMES DE HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO CONTRA OS POLICIAIS MILITARES. PROVA ORAL COLHIDA, INCLUSIVE SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO, NO SENTIDO DE QUE OS DISPAROS DE ARMA DE FOGO FORAM DIRECIONADOS PARA AS SUPOSTAS VÍTIMAS. PRONÚNCIA QUE SE IMPÕE. DÚVIDA QUE DEVE SER DIRIMIDA PELO JURADOS. DECISÃO REFORMADA NO PONTO. (II) AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES PARA PRONUNCIAR O ACUSADO C. H. D. AGENTES NOMINADOS COM APELIDOS. FRAGILIDADE PROBATÓRIA QUANTO À IDENTIFICAÇÃO DE UM DELES. IMPRONÚNCIA QUE DEVE SER MANTIDA. - Para a pronúncia, não são exigidos os mesmos critérios valorativos dispensados à formação da convicção condenatória; a existência de indícios consistentes que apontam o réu como autor do delito é suficiente para autorizar o envio do feito à sessão plenária do júri. - Recursos conhecidos e provido apenas do Ministério Público (TJSC, Recurso em Sentido Estrito n. 0016978-13.2018.8.24.0023, da Capital, rel. Des. Carlos Alberto Civinski, Primeira Câmara Criminal, j. 12-9-2019).

           Diante das provas apresentadas no caderno processual, extrai-se que o magistrado de primeiro grau não incorreu em qualquer erro ao destacar estar presente a materialidade do delito, bem como os indícios de autoria do delito, o que, por si só, autoriza o juiz a quo a conduzir o julgamento ao Tribunal do Júri em razão da aplicação do princípio do in dubio pro societate.

           Ressalta-se, uma vez mais, que o art. 413 do Código de Processo Penal é claro ao mencionar que o juiz pronunciará o réu quando presentes a materialidade e os indícios de autoria ou participação no delito, o que restou demonstrado no caderno processual.

           Portanto, não há falar na despronúncia do recorrente.

           2-2 Das qualificadoras

           Alternativamente, o recorrente postulou pelo afastamento das qualificadoras do recurso que dificultou a defesa da vítima e do feminicídio, dispostas no art. 121, § 2º, incisos IV e VI, do Código Penal.

           Razão não lhe assiste.

           Sabe-se, pois, que o art. 121, § 2º, incisos I e IV e § 2-A, incisos I e II, do Código Penal, dispõe que o homicídio será qualificado quando cometido "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido" e "contra a mulher por razões da condição de sexo feminino", bem como:

    § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

    I - violência doméstica e familiar;

    II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

           Sobre o assunto, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

    As qualificadoras do crime de homicídio só podem ser afastadas pela sentença de pronúncia quando totalmente divorciadas do conjunto fático-probatório dos autos, sob pena de usurpar-se a competência do juiz natural, qual seja, o Tribunal do Júri (HC n. 97.230, Min. Ricardo Lewandowski, j. 17-11-2009).

           In casu, no tocante a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima, conforme asseverado anteriormente, os elementos probatórios colhidos no instrumento processual indicam que o recorrente teria ceifado a vida da vítima mediante o uso de uma barra de ferro contra a cabeça daquela, dentro do seu apartamento.

           De outra parte, ressalta-se que as fotografias carreadas nos autos apontam que a vítima teria sido agredida na cabeça enquanto dormia, no período noturno, uma vez que seu corpo teria sido localizado sobre um colchão, dentro do seu apartamento (fls. 49/50).

           Nesse diapasão, o Procurador de Justiça destacou (fl. 686):

    [...] No caso em tela, o conjunto fático sob exame espelha situações caracterizadoras das qualificadoras do recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa da vítima, porquanto revelam a probabilidade de ter agido, o réu, no calar da noite, durante o repouso noturno, ocasião em que surpreendeu a vítima com golpes de barra de ferro, perpetrados principalmente na região da cabeça, enquanto ela dormia, sem, portanto, ser capaz de esboçar qualquer tipo de defesa, consoante se observa das fotografias colacionadas aos autos em fls. 49/50. [...]

           Assim sendo, mostra-se demonstrada de forma indiciária a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima.

           Quanto a qualificadora do feminicídio, tem-se que também está demonstrada nos autos.

           Com efeito, há indícios nos autos de que o delito de homicídio teria sido praticado no contexto de violência doméstica e familiar, uma vez que o recorrente e a vítima possuíam uma relação amorosa na mesma residência, bem como há relatos de testemunhas nos autos de que o delito poderia ter sido motivado por ciúmes do recorrente com a vítima, por ela manter conversas com seu ex-companheiro.

           Por outro lado, as ilações perpetradas pelo recorrente no sentido de que a qualificadora do feminicídio deve ser afastada, porquanto a vítima não era do gênero feminino, mas do sexo masculino, não merecem guarida.

           Isso porque, assevera-se que a vítima era reconhecida socialmente como Kamylla Roberta, ou seja, transgênero, sendo que mantinha um relacionamento amoroso com o recorrente.

           Sobre o significado da palavra transgênero, dispõe o dicionário priberam:

    Relativo a ou que tem uma identidade de .gênero diferente daquela que foi atribuída à nascença, por oposição a .cisgênero (ex.: pessoas .transgênero).

    2. Relativo a ou que tem uma identidade de .gênero que não é claramente feminina ou masculina (https://dicionario.priberam.org/transg%C3%A9nero).

           Ademais, destaca-se, novamente, o disposto no art. 121, inciso VI e § 2º-A, do Código Penal:

    Homicídio qualificado

    § 2° Se o homicídio é cometido:

    VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

    § 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

    I - violência doméstica e familiar; 

    II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

           Em breve estudo sobre a temática, segundo a Ex-Ministra de Secretaria das Políticas Públicas para as Mulheres Eleonora Menicucci, o feminicídio:

    Trata-se de um crime de ódio. O conceito surgiu na década de 1970 com o fim de reconhecer e dar visibilidade à discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemática contra as mulheres, que, em sua forma mais aguda, culmina na morte. Essa forma de assassinato não constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado; ao contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas caracterizam o uso de violência extrema. Inclui uma vasta gama de abusos, desde verbais, físicos e sexuais, como o estupro, e diversas formas de mutilação e de barbárie (extraído de https://www.mdh.gov.br/noticias-spm/noticias/integra-do-discurso-da-ministra-eleonora-menicucci-na-cerimonia-de-sancao-da-lei-do-feminicidio).

           Valeria Scarance destaca:

    [...] nenhum homem agride ou humilha a mulher no primeiro encontro. A dominação do homem se estabelece aos poucos. Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o manto do cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher dos amigos e familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e agressão física. Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer barulho, não usar roupas provocantes, não falar com outros homens, cozinhar e cuidar dos filhos, todas "para o bem da mulher e da família". O descumprimento dessas regras naturalizadas na relação justifica para o homem o ato violento e faz com que a vítima seja culpada pela violência (http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistadireitoemovimento_online/edicoes/volume23/volume23_49.Pdf).

           Segundo a revista Gênero e Número, houve um crescimento significativo nos casos de violência registrados: agressões contra a população trans aumentaram mais de 800%, passando de 494 notificações em 2014 para 4.137 em 2017. O levantamento não considera homicídios, apenas agressões registradas em unidades públicas de saúde (http://www.generonumero.media/transfobia-11-pessoas-trans-sao-agredidas-a-cada-dia-no-brasil-2/).

           Pondera-se que, conforme a Associação Nacional de Travestis e Transexuais -ANTRA-, o índice de pessoas mortas por transfobia, que é uma espécie de aversão ou discriminação contra transexuais, transgêneros ou travestis, no Brasil é alarmante, pois, o número de assassinatos chegou a 132 de outubro de 2018 a setembro de 2019 e 163 em todo o ano de 2018. Além do mais, há registros no sentido de que o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos por transfobia (https://www.metropoles.com/brasil/direitos-humanos-br/brasil-tem-o-maior-indice-de-pessoas-mortas-por-transfobia).

           Nesse contexto, esta relatora possui o entendimento de que a proteção à mulher, com supedâneo na Lei Maria da Penha, deve ser alargada ao ponto de também proteger as pessoas que se identificam como do gênero feminino, espelhado nos direitos fundamentais ao livre desenvolvimento da personalidade, igualdade, à vida, sobretudo pela dignidade da pessoa humana.

           Ressalta-se que a Lei n. 13.104/2015, que introduziu a qualificadora do feminicídio no ordenamento jurídico, sofreu, pouco tempo antes de ser aprovada, a substituição do vocábulo "gênero" pela expressão "condição de sexo feminino".

           Destaca-se, outrossim, a existência do projeto de Lei do Senado Federal n. 191, de 2017, que objetiva "assegurar à mulher as oportunidades e facilidades para viver sem violência, independentemente da sua identidade de gênero".

           O autor do projeto de Lei, Senador Jorge Viana, assim justificou a iniciativa legislativa:

    Embora o foco inicial tenha sido a proteção da mulher, é cediço que o ordenamento jurídico deve acompanhar as transformações sociais. Nesse contexto, entendemos que a Lei Maria da Penha deve ter o seu alcance ampliado, de modo a proteger não apenas as mulheres nascidas com o sexo feminino, mas também as pessoas que se identificam como sendo do gênero feminino, como é o caso de transexuais e transgêneros.

    Estamos falando, portanto, de conferir a proteção especial da Lei Maria da Penha a pessoas que se enxergam, se comportam e vivem como mulheres, e que, da mesma forma que as que nascem com o sexo feminino, sofrem violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral por parte de parentes, companheiros ou conviventes. Com esse propósito, a presente proposição acrescenta ao art. 2º da Lei Maria da Penha a expressão "identidade de gênero", a fim de permitir a sua aplicação a transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres. Grifos no original.

           Para a autora Adriana Ramos de Mello, a qualificadora do feminicídio incide quando o sujeito passivo for mulher de acordo com o critério psicológico, ou seja, quando a pessoa se identificar com o sexo feminino, mesmo quando não tenha nascido com o sexo biológico feminino.

           A sobredita autora complementa:

    [...] Em tese, não se admite analogia em desfavor do réu. No entanto, a Lei Maria da Penha já foi aplicada a mulher transexual por decisão da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis em Goiás, da lavra da Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães (processo n. 201103873908, TJGO).

    A transexualidade caracteriza-se por uma contradição entre a identidade sexual ou de gênero com o sexo biológico, o que causa uma dificuldade terminológica. Pode ser considerada, portanto, mulher transexual o indivíduo que nasce com anatomia masculina e se identifica com o gênero feminino, e como homem transexual a pessoa que nasce com anatomia feminina, identificando-se com o sexo masculino.

    [...]

    Além disso, a alteração que a Lei sofreu pouco tempo antes de ser aprovada, que substituiu o vocábulo "gênero" pela expressão "condição de sexo feminino", na verdade não altera a interpretação, já que a expressão "por razões de sexo feminino" prende-se, igualmente, a razões de gênero. O legislador não almejou trazer uma qualificadora para a morte de mulheres. Se assim fosse, bastaria ter colocado: Se o crime for cometido contra mulher, sem utilizar a expressão "por razões da condição de sexo feminino". [...] (http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistadireitoemovimento_online/edicoes/volume23/volume23_49.Pdf).

           Não se desconhece, outrossim, de parte do posicionamento doutrinário no sentido de que as pessoas transexuais deveriam ser submetidas à cirurgia de redesignação sexual a fim de que possam gozar de medidas protetivas sob o manto da Lei Maria da Penha e, de igual modo, abarcadas pela qualificadora do feminicídio, assim como das evidentes diferenças técnicas e legislativas entre a referida norma legal e o Código Penal.

           Contudo, é percuciente destacar que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI n. 4275, de relatoria do Ministro Edson Fachin, destacou que, para fins de registro civil, não há necessidade de realização de procedimento cirúrgico, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, in verbis:

    AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente (ADI 4275, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 1º-3-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-045 DIVULG 06-03-2019 PUBLIC 7-3-2019).

           No mesmo viés, esta relatora já se posicionou:

    APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO. MODIFICAÇÃO DO PRENOME E GÊNERO MASCULINO PARA FEMININO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS GENITORES. POSTERIOR DESISTÊNCIA. HOMOLOGAÇÃO. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRESCINDIBILIDADE DA CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. SITUAÇÃO QUE SE MOSTRA PREJUDICIAL AO PSIQUISMO DO AUTOR, O QUAL SOFREU VASTO PERÍODO DE SUA VIDA. NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO DO NOME COM A PERSONALIDADE. RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, A TEOR DO ARTIGO 1º, INCISO III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONJUNTO PROBATÓRIO ROBUSTO ACERCA DO TRANSTORNO SEXUAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA. I - Os elementos constantes nos autos são suficientes para corroborar que o não acolhimento do pedido de retificação do nome e gênero do autor, nos assentos de nascimento, configura violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. II - Consigna-se a necessidade de oxigenação do ordenamento jurídico, pois o direito deve adequar-se à realidade do fato social e às mudanças de paradigmas. Ademais, qualquer outra decisão contrária não teria eficácia e caracterizaria engessamento na entrega da prestação jurisdicional. III - A presente decisão deve ser consignada apenas e tão somente no livro cartorário e, em hipótese alguma, na certidão de registro civil, de modo que a retificação advém de decisão judicial, bem como para evitar eventuais situações discriminatórias. (TJSC, Apelação Cível n. 2014.074259-6, de Chapecó, minha relatoria, Câmara Especial Regional de Chapecó, j. 23-11-2015).

           Ressalta-se, ainda, que há julgado na jurisprudência brasileira no sentido de adotar a qualificadora do feminicídio em casos de pessoas transgêneras do sexo masculino, com gênero feminino, que não realizaram cirurgia de redesignação sexual.

           Nesse sentido:

    DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. FEMINICÍDIO TENTADO. VÍTIMA MULHER TRANSGÊNERO. MENOSPREZO OU DISCRIMINAÇÃO À CONDIÇÃO DE MULHER. MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA PRESENTES. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. IMPROCEDENTE. TESES A SEREM APRECIADAS PELOS JURADOS. PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA. IMPROCEDENTE. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.

    1. A decisão de pronúncia dispensa a certeza jurídica necessária para uma condenação, bastando o convencimento do Juiz acerca da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria, prevalecendo, nessa fase, o in dubio pro societate.

    2. No âmbito do Tribunal do Júri, as possibilidades de desclassificação, absolvição sumária e impronúncia são limitadas, sendo admitidas apenas quando a prova for inequívoca e convincente, no sentido de demonstrar que o réu não praticou crime doloso contra a vida, pois mínima que seja a hesitação, impõe-se a pronúncia, para que a questão seja submetida ao júri, ex vi do art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal c/c art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal.

    3. Somente as qualificadoras manifestamente improcedentes e sem qualquer apoio na prova dos autos podem ser afastadas.

    4. Recursos conhecidos e desprovidos (RESE n. 0001842-95.2018.8.07.0007, rel. Des. Waldir Leôncio Lopes Júnior, j. 4.7.2019).

           Destaca-se que a Justiça da Colômbia, por meio da Lei Rosa Elvera Cely, realizou o julgamento de uma mulher transgênera como feminicídio pela primeira vez em 2018, sentenciando Davindson Stiven Erazo Sánchez a vinte anos de prisão (https://www.nbcnews.com/news/latino/first-time-colombia-prosecutes-transgender-woman-s-murder-femicide-n950021).

           Salienta-se, uma vez mais, que os dados estatísticos apresentados sobre a violência praticada em pessoas transexuais, transgênero, etc., tem aumentado gradativamente, de modo que se mostra possível adotar uma medida mais severa contra tais atos, a fim de auxiliar na coibição nesta seara criminosa.

           Cumpre argumentar que, na visão desta relatora, esta é uma tendência mundial, a qual o Brasil não pode engatar ritmo indolente a fim de fazer "vistas grossas" a uma problemática cotidiana da sociedade global.

           Consigna-se, uma vez mais, a necessidade de oxigenação do ordenamento jurídico, pois o direito deve adequar-se à realidade do fato social e às mudanças de paradigmas.

           Desse modo, tem-se que a expressão "razões da condição do sexo feminino", contida no art. 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, deve ser interpretada extensivamente aos casos de pessoas transgêneras, sobretudo pela dignidade da pessoa humana, nos casos em que houver menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

           Volvendo atenção ao caso em tela, segundo o depoimento judicial prestado pela Delegada de polícia Salete Mariano Teixeira, há indícios nos autos de que o recorrente poderia ter praticado o delito em decorrência da vítima trocar mensagens com o ex-namorado.

           Acerca da incidência da qualificadora do feminicídio na baila, sublinha-se que o caderno processual apontou, indiciariamente, que a vítima era conhecida socialmente e sentia-se como mulher, ainda que não tenha realizado a cirurgia de redesignação sexual.

           Nesse norte, o Procurador de Justiça destacou (fl. 687):

    Destarte, no caso em apreço, tem-se indubitável que a vítima era socialmente reconhecida e sentia-se como mulher, ainda que não tenha se submetido a cirurgia de redesignação sexual. E como muito bem salientou o douto Promotor de Justiça André Otávio Vieira de Mello, em sede de suas contrarrazões, o Código Penal, ao tipificar o homicídio qualificado pelo feminicídio, não restringiu o sujeito passivo do crime como as pessoas que nasceram com o sexo biológico feminino, mas abrangeu todas as pessoas que são ou estão condicionadas ao sexo feminino. Ou seja, a condição de sexo feminino abarca todas as pessoas cujo modo de ser é socialmente visto como sendo feminino.

    Desta feita, tendo em vista que o crime foi cometido dentro da unidade doméstica e familiar, em decorrência de relacionamento amoroso existente entre o réu e a vítima, deve permanecer a qualificadora do crime em apreço. Logo, havendo suporte no conjunto probatório capaz de configurar as qualificadoras previstas nos incisos IV e VI, c/c § 2º-A, I, do art. 121, § 2º, do Código Penal, as mesmas devem ser mantidas na pronúncia do acusado, possibilitando que o Juiz natural da causa, isto é, o Tribunal de Júri, sobre elas se pronuncie, em homenagem ao princípio in dubio pro societate.

           Portanto, mostra-se viabilizada a aplicação da qualificadora do feminicídio, porquanto há demonstração indiciária da sua presença.

           Registra-se que, na hipótese de contraposição de fatos e provas nos autos, ou seja, versões conflitantes de situações e qualificadoras, estas devem ser examinadas pelo Conselho de Sentença, cabendo ao juízo julgador, ao pronunciar o agente, apurar a existência ou não da materialidade delitiva, assim como indícios da autoria do crime, nos termos do art. 413 do CPP.

           Diante do acima asseverado, não se quer dizer que as qualificadoras devem ou não ser aplicadas, mas que os indícios da sua aplicabilidade encontram-se caracterizados, de modo que não há qualquer certeza absoluta de que aquelas devem ser excluídas do julgamento.

           Frisa-se que, nesta fase processual, aplica-se o princípio do in dubio pro societate, cabendo ao Tribunal do Júri dirimir as controvérsias probatórias existentes dos autos.

           Nesse sentido:

    RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO E CORRUPÇÃO DE MENORES (ART. 121, § 2°, I E IV, DO CÓDIGO PENAL E ART. 244-B DA LEI N° 8.069/90). RÉUS QUE, NA COMPANHIA DE ADOLESCENTE, SUPOSTAMENTE DESFERIRAM DOIS GOLPES DE FACA NA REGIÃO DO ABDÔMEN DA VÍTIMA, CAUSANDO-LHE O ÓBITO. RECURSO DEFENSIVO. SUSCITADA NULIDADE DA DECISÃO DE PRONÚNCIA POR EXCESSO DE LINGUAGEM. NÃO OCORRÊNCIA. MAGISTRADA QUE, DE FORMA SATISFATÓRIA E SUSCINTA, ANALISOU AS PROVAS DA MATERIALIDADE E OS INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA DELITIVA, NOS TERMOS DO ART. 93, INCISO IX, DA CF/88. EXCESSO DE LINGUAGEM NÃO VERIFICADO. PLEITEADO AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA DO RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DA VÍTIMA. IMPOSSIBILIDADE. TESE DE AUSÊNCIA DE SURPRESA QUE FOI DEVIDAMENTE APRECIADA PELO JUÍZO A QUO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS PARA ATESTAR, DE PLANO, QUE A VÍTIMA NÃO FOI SURPREENDIDA NA OCASIÃO DO CRIME. SUPERIORIDADE NÚMERICA DOS ENVOLVIDOS NO ATAQUE À VÍTIMA (DOIS RÉUS E UM ADOLESCENTE), ADEMAIS, QUE CORROBORAM A IMPOSSIBILIDADE DE DEFESA DO OFENDIDO. QUALIFICADORA QUE DEVE SER APRECIADA PELO CONSELHO DE SENTENÇA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO (TJSC, Recurso em Sentido Estrito n. 0001261-60.2017.8.24.0066, de São Lourenço do Oeste, rel. Des. Volnei Celso Tomazini, Segunda Câmara Criminal, j. 12-6-2018).

    RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO QUALIFICADO PELO MOTIVO TORPE, PELO EMPREGO DE MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA E EM RAZÃO DE SER PRATICADO CONTRA MULHER (FEMINICÍDIO), NA FORMA TENTADA (ART. 121, § 2°, INCISOS I, IV E VI, C/C ART. 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). RECURSO DEFENSIVO. ALMEJADO AFASTAMENTO DE UMA DAS QUALIFICADORAS RECONHECIDAS. INVIABILIDADE. INDÍCIOS QUE DÃO MARGEM À INCIDÊNCIA DA QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. EVENTUAIS DÚVIDAS A SEREM DIRIMIDAS PELA CORTE POPULAR. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Na fase da pronúncia, as qualificadoras "só podem ser excluídas quando manifestamente improcedentes, sem qualquer apoio nos autos, vigorando também quanto a elas o princípio in dubio pro societate". (MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 8ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 921). (TJSC, Recurso em Sentido Estrito n. 0009104-94.2016.8.24.0039, de Lages, rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, Primeira Câmara Criminal, j. 30-3-2017).

           Assim, tem-se que as qualificadoras do motivo torpe e do recurso que dificultou a defesa da vítima devem ser mantidas até o julgamento do feito pelo Conselho de Sentença.

           Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e negar-lhe provimento.

           Este é o voto.


Gabinete Desembargadora Hildemar Meneguzzi de Carvalho