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TJSC Jurisprudência Catarinense
Processo: 0006461-89.2012.8.24.0012 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Selso de Oliveira
Origem: Caçador
Orgão Julgador: Quarta Câmara de Direito Civil
Julgado em: Thu May 09 00:00:00 GMT-03:00 2019
Juiz Prolator: Luciana Pelisser Gottardi Trentini
Classe: Apelação Cível

 


 


Apelação Cível n. 0006461-89.2012.8.24.0012, de Caçador

Relator: Desembargador Selso de Oliveira

   APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUAL. INDEFERIMENTO NA ORIGEM. DESNECESSIDADE DE PRÉVIA SUBMISSÃO A PROCEDIMENTO DE TRANSGENITALIZAÇÃO. SUFICIÊNCIA DA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE AFIRMANDO A IDENTIDADE DE GÊNERO. VIABILIDADE DA RETIFICAÇÃO TANTO DO PRENOME QUANTO DO GÊNERO (MASCULINO PARA FEMININO). PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E DESTA CORTE DE JUSTIÇA. REFORMA DA SENTENÇA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

   "A retificação do prenome e do gênero no registro no registro civil possibilita o exercício dos atos da vida civil e o convívio em sociedade, sem constrangimento ou discriminação, e realiza o direito da autora à dignidade humana, à identidade sexual, à integridade psíquica e à autodeterminação sexual. Não se pode condicionar a retificação do registro civil à realização de cirurgia de transgenitalização, que tem alto custo e impõe riscos, porque o que se busca tutelar é a identidade sexual psíquica" (TJSC, AC n. 2015.015342-4, Rel. Des. Domingos Paludo, j. 5/11/2015).

   "Se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade" (STJ, REsp nº 1.626.379/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 9/5/2017).

           Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 0006461-89.2012.8.24.0012, da comarca de Caçador 2ª Vara Cível em que é Apelante E. G. e Apelado Ministério Público do Estado de Santa Catarina.

           A Quarta Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento. Custas legais.

           O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Joel Figueira Júnior, com voto, e dele participou a Excelentíssima Senhora Desembargadora Bettina Maria Maresch de Moura.

           Florianópolis, 9 de maio de 2019.

Desembargador Selso de Oliveira

Relator

 

           RELATÓRIO

           E. G. ajuizou pedido de "Retificação de Registro de Nascimento", argumentando, litteris:

    Que o Requerente nasceu do sexo masculino, no entanto, desde sua infância sempre se comportou como alguém do sexo feminino.

    Que os anos foram se passando e o Requerente passou a sofrer sérias discriminações em virtude de possuir sua alma feminina com um corpo que causava conflito com sua personalidade.

    As discriminações vinham das mais variadas formas, seja por gestos, atitudes e até mesmo violência.

    Não conseguia emprego e quando conseguia, era ainda pior porque pessoas de mente "fechada" normalmente o agrediam, chegando a vias de fato, em virtude de seu comportamento, conforme Boletim de Ocorrência registrado por esta procuradora (doc. 05-6).

    Muitas das vezes era chamado de "aberração", "bicha louca" enfim entre outros pejorativos, desnecessários serem transcritos.

    Que a partir de muitos fatos discriminatórios ocorridos com o Requerente, efetuou consultas com psiquiatras e psicólogos, passando a ser assistido pelos profissionais, com o propósito de efetuar cirurgia de mudança de sexo, conforme declarações e atestados em anexo (doc. 07-8).

    Inclusive já está em lista de espera para efetuar cirurgia de mudança de sexo junto ao Sistema Único de Saúde (SUS), aguardando ser chamado para realização da mesma (doc. 09).

    Que os desagradáveis acontecimentos tem-lhe causado muito revolta e constrangimentos toda a vez que tem que assinar seu nome, uma vez que está relacionado diretamente a um sofrimento sofrido, que deixaram marcas que não consegue apagar de sua memória.

    É evidente que há um conflito entre a personalidade do Requerente, seu corpo e sua mente, motivando-o a requerer a tutela jurisdicional para que possibilite dar um passo rumo à sua dignidade, tão merecida e assegurada pela Constituição.

    Em decorrência dos fatos mencionados vem o Requerente pleitear que seja efetuada a retificação de seu nome na Certidão de Nascimento para T. G.

           Postulou a gratuidade de justiça e juntou documentos (p. 16-26).

           O Ministério Público, na manifestação de p. 28-30, após breve apanhado acerca da jurisprudência dos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul, posicionou-se pela improcedência do pedido, vez que as provas trazidas não comprovariam, em tese, "aptidão" da requerente à realização do procedimento cirúrgico (p. 28-30).

           Foram oficiados o estado de Santa Catarina e o município de Caçador para que prestassem informações acerca da posição ocupada pela requerente na fila de espera da cirurgia neocolpovulvoplastia (p. 31-33).

           Em resposta, as secretarias municipal e estadual de saúde disseram inexistir, em suas bases de dados, processo interno iniciado pela requerente com fins a se submeter ao procedimento (p. 34-35, 36-40 e 43-44).

           Sentença da lavra da juíza Luciana Pelisser Gottardi Trentini às p. 45-47, julgando improcedente o pedido e condenando a requerente em custas processuais, não obstante a gratuidade deferida.

           Recurso de apelação às p. 52-68, reprisando as alegações e asseverando que a quaestio em debate não é mais novidade nos tribunais pátrios, que passaram a admitir a retificação do registro civil dos transexuais - para mudança de prenome e gênero -, independentemente da prévia submissão à cirurgia de transgenitalização. Enfatiza que "realmente não se encaixa em seu sexo, e necessita mudá-lo para seguir sua vida com dignidade", acrescentando nunca ter se envolvido na prática de delitos e estar regularmente inscrita perante os órgãos públicos. Insiste não haver óbice ao acolhimento do pedido, pedindo seja reformada a sentença e expedida ordem de retificação de seu registro de nascimento, para nele fazer constar o nome T. G., no lugar de E. G., e alterado o gênero (sexo) de masculino para feminino.

           Em contrarrazões, a promotora de justiça Andreza Borinelli asseverou: "o relato do apelante necessitaria vir acompanhado de provas contundentes de que há desconformidade entre o seu sexo biológico e seu sexo psicológico, ou seja, prova definitiva de seu transexualismo [...] a feitura de cirurgia de readequação de sexo não deve ser o fator determinante para o deferimento do pleito, mas sim, a vasta comprovação do alegado, o que não aconteceu no presente caso, uma vez que o apelante pautou o pedido no fato de pretender mudar de sexo e já estar na fila de espera para a cirurgia". Manifestando-se pelo desprovimento do apelo.

           Lavrou parecer pela Procuradoria-Geral de Justiça, em 14/3/2014, o Excelentíssimo Senhor Paulo Cezar Ramos de Oliveira (p. 82-93), no sentido da conversão do julgamento em diligência "para os fins de determinar que a Secretaria Municipal de Saúde de Caçador informe, mediante exame do apelante, e de maneira robusta e fundamentada, se atualmente ele tem condições de figurar na lista para realização de cirurgia de mudança de sexo, para que, em caso positivo, seja ele ingressado na respectiva relação, autorizando-se, desde já, a retificação do seu registro civil para que passe a constar o nome T. G." (p. 93).

           Às p. 100-101 o então relator, desembargador Joel Figueira Júnior, determinou em 10/9/2014 a suspensão do processo até o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário nº 670.422, com repercussão geral.

           Arquivados administrativamente em 10/10/2014 (p. 104).

           Os autos foram redistribuídos a este relator em 1º/9/2018.

           VOTO

           Da admissibilidade

           A sentença foi prolatada e publicada sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, à luz do qual o caso será apreciado, consoante o Enunciado Administrativo nº 2 do Superior Tribunal de Justiça.

           Cuja ausência de recolhimento do preparo decorre do fato de ser a requerente beneficiária da gratuidade, concedida à p. 27.

           Preenchidos os pressupostos de admissibilidade, o recurso deve ser conhecido.

           Do mérito

           Os elementos constantes dos autos revelam-se suficientes ao deslinde da quaestio, mostrando-se desnecessário dilação probatória, mormente em havendo orientação do colendo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que "o art. 1.109 do CPC abre a possibilidade de não se obrigar o juiz, nos procedimentos de jurisdição voluntária, à observância do critério de legalidade estrita, abertura essa, contudo, limitada ao ato de decidir, por exemplo, com base na equidade e na adoção da solução mais conveniente e oportuna à situação concreta" (REsp nº 623.047/RJ, ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 14/12/2004).

           Num rápido resumo, diz a apelante que "nasceu do sexo masculino, no entanto, desde sua infância sempre se comportou como alguém do sexo feminino", enfatizando que "passou a sofrer sérias discriminações em virtude de possuir sua alma feminina com um corpo que causava conflito com sua personalidade. As discriminações vinham das mais variadas formas, seja por gestos, atitudes e até mesmo violência", e ao depois de tanta discriminação e sofrimento psíquico chegou a intencionar submeter-se a procedimento cirúrgico para fins de transgenitalização.

           Enfim, deduziu os tantos conflitos que lhe acometeram, dizendo pretender alterar, no seu registro de nascimento, o prenome (de E. G. para T. G.), bem como o sexo/gênero (de masculino para feminino), aduzindo que "assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado, tampouco violentado em sua integridade psicofísica" (p. 62).

           A sentença de improcedência data de 13/11/2013, consignando a digna togada, verbis (p. 45-46):

    [...]

    Analisando os autos, observa-se que o autor realizou apenas três sessões de acompanhamento psicológico, e acostou apenas uma declaração de médico psiquiatra, o que não comprova sua capacidade psicológica para realização da cirurgia neocolpovulvoplastia.

    Oficiado ao Estado de Santa Catarina e ao Município de Caçador para informar a atual posição do autor, na fila de espera para realização da cirurgia de neocolpovulvoplastia, bem como a provável data para realização da mesma, informaram que não encontraram protocolo de entrada de processo ou demais dados em nome do autor.

    Ainda, expedido ofício ao Município de Caçador para que informasse o porquê não foi encaminhado o processo de tratamento fora do domicílio do paciente, ora autor, a fim de realizar a cirurgia neocolpovulvoplastia, este informou que não consta nos registros da municipalidade, no setor TFD, procedimento de cirurgia em nome do autor, motivo pelo qual não houve encaminhamento.

    Verifica-se que as alegações do autor não merecem prosperar, posto que as provas necessárias para ratificar as alegações não se encontram nos autos, ou seja, o autor não se submeteu à cirurgia de transgenitalização, requisito necessário contido na Resolução nº 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina.

    [...]

    Portanto, não devidamente comprovada a pretensão requerida pelo autor, e não estando apto para a devida retificação de seu assento de nascimento, não resta alternativa senão a improcedência da pretensão por ele formulada.

           À época do despacho que suspendeu o andamento do presente feito, da lavra do ilustre desembargador Joel Figueira Júnior e datado de 10/9/2014 (p. 100-101), o Supremo Tribunal Federal havia reconhecido repercussão geral da quaestio suscitada no Recurso Extraordinário nº 670.422/RS, fixando o Tema 761: "concernente à necessidade de realização de cirurgia de modificação do fenótipo feminino para o masculino, como condição para a alteração do assentamento do sexo no registro civil".

           Em 15/8/2018, por maioria e nos termos do voto do relator, ministro Dias Toffoli, parcialmente vencidos os ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes, o Pleno do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao recurso - sem acórdão publicado até o momento -, fixando as seguintes teses:

    I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;

    II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero';

    III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;

    IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.

           Aliás, cabe referenciar que ainda em 1º/3/2018, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/DF, já havia se posicionado no sentido de que o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade de gênero, manifestação da personalidade da pessoa humana, assentando que "a pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer, por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade, dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil, pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e de laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade" (ADI 4275, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 1º/3/2018, publicado 7/3/2019). De cujo voto do ministro Edson Fachin, cabe extrair:

    [...] Tais obrigações se justificam na medida em que a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Ademais, se ao Estado cabe apenas o reconhecimento, é-lhe vedado exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico ou laudo psicológico que exijam do indivíduo a assunção de um papel de vítima de determinada condição. Noutras palavras, a alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental.

           Posicionamento já adotado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a partir do julgamento do Recurso Especial nº 1.626.739/RS, em 9/5/2017, quando, enfatizando-se o princípio da dignidade da pessoa humana, bem assim o direito à identidade, a não discriminação e à felicidade, reconheceu-se a possibilidade do transexual retificar o seu assento civil, com alteração do prenome e do gênero (sexo), independentemente da realização do procedimento cirúrgico de transgenitalização. Em cujo voto, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, asseverou que "se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino e vice-versa), a manutenção do sexo constante do registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se, a meu juízo, flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade".

           Cito a ementa desse julgado:

    RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO.

    1. À luz do disposto nos artigos 55, 57 e 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), infere-se que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclama, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público.

    2. Nessa perspectiva, observada a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, admite-se a mudança do nome ensejador de situação vexatória ou degradação social ao indivíduo, como ocorre com aqueles cujos prenomes são notoriamente enquadrados como pertencentes ao gênero masculino ou ao gênero feminino, mas que possuem aparência física e fenótipo comportamental em total desconformidade com o disposto no ato registral.

    3. Contudo, em se tratando de pessoas transexuais, a mera alteração do prenome não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que traduz a máxima antiutilitarista segundo a qual cada ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo e não como um meio para a realização de finalidades alheias ou de metas coletivas.

    4. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade.

    5. Assim, a segurança jurídica pretendida com a individualização da pessoa perante a família e a sociedade - ratio essendi do registro público, norteado pelos princípios da publicidade e da veracidade registral - deve ser compatibilizada com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que constitui vetor interpretativo de toda a ordem jurídico-constitucional.

    6. Nessa compreensão, o STJ, ao apreciar casos de transexuais submetidos a cirurgias de transgenitalização, já vinha permitindo a alteração do nome e do sexo/gênero no registro civil (REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 18.11.2009; e REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 18.12.2009).

    7. A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças.

    8. Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumano, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais).

    9. Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral).

    10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico.

    11. Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade.

    12. Exegese contrária revela-se incoerente diante da consagração jurisprudencial do direito de retificação do sexo registral conferido aos transexuais operados, que, nada obstante, continuam vinculados ao sexo biológico/cromossômico repudiado. Ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.

    13. Recurso especial provido a fim de julgar integralmente procedente a pretensão deduzida na inicial, autorizando a retificação do registro civil da autora, no qual deve ser averbado, além do prenome indicado, o sexo/gênero feminino, assinalada a existência de determinação judicial, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se a publicidade dos registros e a intimidade da autora.

    (REsp 1.626.739/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 9/5/2017).

           O tema foi objeto, também, da atenção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante a I Jornada de Direito da Saúde, em 2014, culminando na edição dos seguintes enunciados:

    Enunciado 42. Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil.

    Enunciado 43. É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização.

           No âmbito deste Tribunal, o artigo 550-A do Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça - com redação acrescentada por meio do Provimento nº 9, de 25 de junho de 2018 -, passou a dispor:

    Art. 550-A. Os transgêneros, que assim se declararem, maiores e capazes ou emancipados, poderão requerer ao oficial do registro civil das pessoas naturais a alteração do prenome e do sexo no assento de nascimento.

    § 1° O requerimento deverá ser firmado na presença do registrador pela parte requerente ou por seu procurador constituído por instrumento público, com poderes específicos para o ato, e indicar expressamente a alteração pretendida.

    § 2º Se o requerente possuir agnomes, estes serão suprimidos.

    § 3º A alteração do prenome e do sexo será feita em um único ato de averbação.

           Exigindo o artigo 550-B desse regramento, a instrução do requerimento com os seguintes documentos:

    Art. 550-B. [...]

    I - certidão de nascimento atualizada;

    II - certidão de casamento atualizada, se for o caso;

    III - certidão de nascimento dos filhos, se for o caso;

    IV - cópia da carteira de identidade ou de outro documento de identificação que contenha foto e assinatura;

    V - cópia do Cadastro de Pessoa Física - CPF;

    VI - cópia do título de eleitor ou certidão de quitação eleitoral;

    VII - comprovante de endereço;

    VIII - cópia da carteira de identidade social, se houver;

    IX - cópia do Cadastro de Pessoa Física - CPF social, se houver;

    X - cópia do título de eleitor com nome social, se houver;

    XI - cópia do passaporte brasileiro, se houver;

    XII - certidões atualizadas dos distribuidores cíveis e criminais da Justiça Estadual e Federal e da Justiça do Trabalho dos domicílios onde o requerente residiu nos últimos 10 anos;

    XIII - certidão da Justiça Militar, se for o caso;

    XIV - certidão dos tabelionatos de protestos dos domicílios onde o requerente residiu nos últimos 5 anos.

    § 1º O requerimento poderá ser feito em qualquer registro civil das pessoas naturais do Estado, que o encaminhará ao registro civil do local do assento de nascimento para realização da averbação e das anotações, via Central do Registro Civil - CRC ou por malote digital.

    § 2º Serão aceitos requerimentos encaminhados por ofício de registro civil das pessoas naturais de outros Estados da Federação e do Distrito Federal desde que acompanhados dos documentos exigidos no caput deste artigo.

    § 3º Todos os documentos referidos neste artigo deverão ser autuados e arquivados, de forma física ou eletrônica, no ofício em que foi lavrado originalmente o registro de nascimento e naquele em que tramitou o requerimento, quando situados neste Estado.

           Assinalando, outrossim, que "a existência de ações cíveis e criminais não impedirá a substituição do prenome e do sexo, devendo o oficial de registro civil das pessoas naturais comunicar a alteração no assento de nascimento aos juízes onde tramitam as ações" (art. 550-C do mesmo Código de Normas).

           De modo que a alteração/retificação pretendida depende tão somente da livre manifestação do próprio interessado, passível, inclusive, de ser realizada diretamente perante o oficial do registro civil das pessoas naturais.

           No caso, como antes já acentuado, a requerente afirma que "desde sua infância sempre se comportou como alguém do sexo feminino [...] passou a sofrer sérias discriminações em virtude de possuir sua alma feminina com um corpo que causava conflito com sua personalidade. As discriminações vinham das mais variadas formas, seja por gestos, atitudes e até mesmo violência".

           Fez vir aos autos o atestado de p. 22 emitido por psiquiatra em 3/5/2012 a dar conta de que "é portador de transexualismo (CID 10 F64.0). Sente-se desconfortável por ter corpo de mulher. No momento apresenta-se apto à cirurgia de mudança de sexo".

           Cujos documentos de p. 23-24, emitidos pela secretaria de saúde do município de Caçador/SC, levaram-na acreditar que integraria lista de espera para submissão à cirurgia de transgenitalização.

           Tanto, aliás, que o Procurador de Justiça Paulo Cezar Ramos de Oliveira, no parecer exarado às p. 82-93, pontuou: "não é difícil concluir que o apelante só não realizou a cirurgia de mudança de sexo, ou mesmo só não está incluído na fila de espera à sua realização, por negligência do Estado ao concluir o seu atendimento" (p. 91).

           Enfim, presente sólida manifestação da vontade pela requerente, é o que basta para o provimento do recurso.

           Cabe referir que este colegiado já pouco apreciou questão similar, em acórdão de minha relatoria, assim ementado:

    APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. TRANSEXUAL. ALTERAÇÃO DE PRENOME E SEXO (GÊNERO) DE FEMININO PARA MASCULINO. INDEFERIMENTO NA ORIGEM. DESNECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO DE TRANSGENITALIZAÇÃO, TAMPOUCO DE LAUDO MÉDICO OU PSICOLÓGICO. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE AFIRMANDO A IDENTIDADE DE GÊNERO SUFICIENTE AO ACOLHIMENTO DO PEDIDO. PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E DESTA CORTE. REFORMA DA SENTENÇA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. "A retificação do prenome e do gênero no registro no registro civil possibilita o exercício dos atos da vida civil e o convívio em sociedade, sem constrangimento ou discriminação, e realiza o direito da autora à dignidade humana, à identidade sexual, à integridade psíquica e à autodeterminação sexual. Não se pode condicionar a retificação do registro civil à realização de cirurgia de transgenitalização, que tem alto custo e impõe riscos, porque o que se busca tutelar é a identidade sexual psíquica" (AC n. 2015.015342-4, relator Des. Domingos Paludo, j. 5/11/2015) (AC n. 0002780-88.2016.8.24.0039, j. 31/1/2019).

           Colhendo-se ainda, deste Tribunal de Justiça:

    APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO PARA ALTERAÇÃO DE PRENOME E REDESIGNAÇÃO DE SEXO. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO INSURGINDO-SE CONTRA A MUDANÇA DO GÊNERO NO REGISTRO CIVIL SEM QUE TENHA SIDO REALIZADA A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

    "A retificação do prenome e do gênero no registro no registro civil possibilita o exercício dos atos da vida civil e o convívio em sociedade, sem constrangimento ou discriminação, e realiza o direito da autora à dignidade humana, à identidade sexual, à integridade psíquica e à autodeterminação sexual. Não se pode condicionar a retificação do registro civil à realização de cirurgia de transgenitalização, que tem alto custo e impõe riscos, porque o que se busca tutelar é a identidade sexual psíquica (AC 2015.015342-4, Rel. Des. Domingos Paludo, j. 5/11/2015)" (AC 0009847-96.2013.8.24.0011, Rel. Des. André Carvalho, j. 8/6/2017).

    APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE GÊNERO NO REGISTRO CIVIL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. TROCA DO GÊNERO MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA COMPROVADAMENTE TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO DE REDESIGNAÇÃO DE SEXO - TRANSGENITALIZAÇÃO. PRECEDENTES DESTA CORTE E ENTENDIMENTO FIRMADO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

    "[...] à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico.

    [...] ou seja, independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito." (STJ, REsp 1.626.739/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 9/5/2017) (AC n. 0302844-54.2017.8.24.0018, Rel. Des. Raulino Jacó Brüning, j. 14/12/2017).

           Do Tribunal de Justiça de São Paulo:

    AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de Retificação de Registro Civil - Transexualismo ou Disforia de gênero - Autor que busca a modificação do prenome masculino para feminino - Possibilidade - Decisão que depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que expressar a sua identidade de gênero - Desnecessidade da realização de laudo ou procedimento médico (ADI 4275 - Rel. Ministro Marco Aurélio - em 1º de março de 2018) - Recurso provido (AI n. 2141106-86.2018.8.26.0000; Rel. Des. Rodolfo Pellizari; 6ª Câmara de Direito Privado; j. 9/10/2018).

    APELAÇÃO. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE ASSENTO. Sentença que acolheu pedido de alteração do prenome e rejeitou pretensão referente à modificação do gênero. MUDANÇA DE GÊNERO NO REGISTRO CIVIL. Segundo a jurisprudência majoritária contemporânea, o direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização. Precedentes do E. STJ e do E. STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, com eficácia erga omnes. Necessidade de preservação do direito extrapatrimonial à sexualidade, resolvendo-se a crise de identidade advinda da disforia de gênero por meio da equalização da identidade sexual em relação ao registro civil designador do sujeito perante a sociedade. Priorização à visão antropocêntrica do direito civil. Demonstração da transexualidade por parte do apelante e da ausência de animus fraudulento. RECURSO PROVIDO (AC 1008455-64.2014.8.26.0577; Relª. Desª. Rosangela Telles; 2ª Câmara de Direito Privado, j. 20/8/2018).

           Cabe deixar registrado que, ademais da retificação do prenome (E. G. para T. G.), a requerente, nesta instância, formulou expressamente pedido de retificação também do gênero (masculino para feminino), cuja pretensão, entendo, integrava o conteúdo implícito do pedido, constituindo, demais disso, consequência inevitável do provimento jurisdicional concedido, consoante lição contida na ementa do REsp nº 1.626.739/RS, antes já citada: "se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade" (STJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 9/5/2017).

           Diante da procedência do pedido, caberá ao juízo de origem determinar as providências necessárias visando a retificação do registro junto à respectiva Serventia, assim também a comunicação desta decisão aos juízos onde acaso tramitem feitos cíveis e criminais envolvendo a requerente.

           Outrossim, ao registrador competirá orientar a requerente "para providenciar a alteração nos seus documentos pessoais e nos demais registros que digam respeito direta ou indiretamente à sua modificação" (art. 550-E do Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça), e "comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do RG, ICN, CPF e passaporte, bem como ao Tribunal Regional Eleitoral" (art. 8º do Provimento CNJ nº 73, de 28/6/2018).

           Presente a firme manifestação de vontade da requerente, dá-se provimento ao recurso, reformando-se a sentença para fins de julgar procedente o pedido, autorizando a retificação, junto ao seu registro de nascimento, tanto do prenome (de E. G. para T. G.) quanto do gênero (sexo), de masculino para feminino.

           Dispositivo

           Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e dar-lhe provimento, para reformar a sentença e julgar procedente o pedido, nos termos da fundamentação.


Gabinete Desembargador Selso de Oliveira