Acesso restrito
Pesquisa de Satisfação:

Excelente

Bom

Ruim

Observações:


FECHAR [ X ]



Obrigado.











TJSC Jurisprudência Catarinense
Processo: 2008.014214-4 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Vanderlei Romer
Origem: Criciúma
Orgão Julgador: Primeira Câmara de Direito Público
Julgado em: Tue Oct 21 00:00:00 GMT-03:00 2008
Juiz Prolator: Eliza Maria Strapazzon
Classe: Apelação Cível

 

Apelação Cível n. 2008.014214-4, de Criciúma

Relator: Des. Vanderlei Romer

"ADMINISTRATIVO - CONCURSO PÚBLICO - RESERVA DE VAGAS PARA AFRO-BRASILEIROS - INDÍCIO DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL - VEDAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL

"'É este o sentido que tem a isonomia no mundo moderno. É vedar que a lei enlace uma conseqüência a um fato que não justifica tal ligação. É o caso do racismo em que a ordem jurídica passa a perseguir determinada raça minoritária, unicamente por preconceito das classes majoritárias. Na mesma linha das raças, encontram-se o sexo, as crenças religiosas, ideológicas ou políticas, enfim, uma série de fatores que os próprios textos constitucionais se incumbem de tornar proibidos de diferenciação. É dizer, não pode haver uma lei que discrimine em função desses critérios'" (BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo: Atual, 1999, 0. 181/182)" (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2005.021645-7, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros).

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2008.014214-4, da comarca de Criciúma (Vara da Faz., Acid. de Trab. e Registros Públicos), em que é apelante Ariza Costa da Silva, e apelado Presidente da Câmara de Vereadores de Criciúma:

ACORDAM, em Primeira Câmara de Direito Público, por votação unânime, desprover o recurso. Custas legais.

RELATÓRIO

Cuida-se de apelação cível interposta por Ariza Costa da Silva contra a sentença que julgou procedente pedido veiculado em ação ordinária ajuizada por Daniela Santana para:

a) declarar a inconstitucionalidade do artigo 5º, da Lei Complementar n. 32/2004, retroagindo os efeitos desta decisão a data da sua edição, com efeito inter parts, e, por via de conseqüência, afastar os efeitos do ato administrativo que alterou os termos do Edital de Concurso Público n. 001/2004, tornando-se hígida a redação original;

b) determinar que o PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES DO MUNICÍPIO DE CRICIÚMA/SC nomeie para o cargo de assistente legislativo a autora, desde que esta atenda as exigências da documentação legal exigida, independentemente da reserva de vaga estabelecida para afro-brasileiro;

c) condenar o PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES DO MUNICÍPIO DE CRICIÚMA/SC ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, estes arbitrados em R$ 1.000,00 (um mil reais), nos termos do artigo 20, § 4º, do CPC (fl. 384).

A apelante bate-se pela reforma do decisum, aos argumentos que seguem: a) o artigo 5º da Lei Complementar n. 32/2004, que estabeleceu a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos realizado pelo Poder Público do município de Criciúma a afro-brasileiros, é constitucional, porquanto em consonância com os anseios da sociedade, que vem buscando assegurar um mínimo de igualdade no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos de saúde e moradia; e b) é uma constante, na legislação supraconstitucional, a previsão de medidas que visam proporcionar igualdade às minorias, sendo certo, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, que "a constitucionalidade de leis nesse sentido depende de se o tratamento diverso outorgado à minoria for justificável por existir uma correlação lógica entre o fator de discrímen tomado em conta e o regramento que se lhe deu" (fl. 309).

Transcorrido in albis o prazo para o oferecimento das contra-razões, malgrado regularmente intimadas as partes, alçaram os autos.

A douta Procuradoria-Geral de Justiça, instada a se manifestar, opinou pelo provimento do recurso.

VOTO

O cerne da controvérsia reside na constitucionalidade da Lei Complementar n. 32/2004, do município de Criciúma, que, conforme se retira do breve relato dos autos, estabeleceu a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos municipais para afro-brasileiros.

A questão não é nova, e já foi submetida ao crivo do egrégio Tribunal Pleno, que, por votação unânime, julgou a legislação em tela inconstitucional.

Eis os fundamentos do voto que alicerçaram o judicioso acórdão, da relatoria do eminente Desembargador Luiz Cézar Medeiros:

Colhe-se dos autos que a impetrante pretendeu, com o presente mandamus, garantir sua vaga como aprovada e classificada no concurso público em posição superior aos aprovados com nota inferior à sua, mesmo que sejam afro-brasileiros.

Ao sentenciar o feito, o Magistrado concedeu a segurança e reconheceu a inconstitucionalidade do art. 5º e parágrafo único da Lei Complementar n. 032/2004, assim como do Edital n. 002/2004, no que toca à reserva de vagas e, em conseqüência, deixou de aplicar a referida legislação ao caso em tela.

Assim, para que seja confirmada a sentença que concedeu a segurança, necessário se faz a análise da constitucionalidade do art. 5º, caput, e parágrafo único, da Lei Complementar n. 032/2004, do Município de Criciúma, que prevê a reserva de vagas para os afro-brasileiros com a seguinte redação:

"Art. 5º. Ficam reservadas aos afro-brasileiros vinte por cento das vagas oferecidas nos concursos públicos realizados pelo Poder Público Municipal para provimento de cargos efetivos.

"Parágrafo único. Para efeitos do disposto no 'caput', considera-se afro-brasileiro aquele identificado como de cor negra ou parda no respectivo registro de nascimento".

A Constituição Estadual, por sua vez, em seu art. 21, dispõe:

"Art. 21. Os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim com os estrangeiros, na forma da lei, observado o seguinte:

[...]

V - a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão" (sem grifo no original).

Ora, a Constituição Estadual, em momento algum previu a reserva de vagas para os descendentes de afro-brasileiros.

De outro lado, a Constituição Federal repudia atos de racismo, dispondo em seu art. 3º e 19:

"Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

[...]

"IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

"Art. 19. É vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

"[...]

"III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si"

A Constituição Estadual, por sua vez, em seu art. 4º, proclama:

"Art. 4º. O Estado, por suas leis e pelos atos de seus agentes, assegurará, em seu território e nos limites de sua competência, os direitos e garantias individuais e coletivos, sociais e políticos previstos na Constituição Federal e nesta Constituição, ou decorrentes dos princípios e do regime por elas adotados, bem como os constantes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, observado o seguinte:[...]"

É certo que a norma em comento, por um de seus dispositivos, tratou de maneira desigual os iguais, pois não há distinção entre o inscrito na condição de afro-brasileiro e a impetrante, a não ser racial. E, assim sendo, encontra óbice na Constituição Estadual e Federal, seja quanto aos seus objetivos, seja quanto aos direitos e garantias individuais do cidadão brasileiro.

Sobre a violação ao princípio da isonomia, colhe-se da doutrina:

"A idéia de objetivos não pode ser confundida com a de fundamentos, muito embora, algumas vezes, isto possa ocorrer. Os fundamentos são inerentes ao Estado, fazem parte de sua estrutura. Quanto aos objetivos, estes consistem em al-go exterior que deve ser perseguido. Portanto, a República Federativa do Brasil tem por meta irrecusável construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras forma de discriminações.

[...]

"'Com o tempo, o princípio da igualdade, sem perder essa concepção primitiva, foi ampliando-se para impedir que os homens fossem diferenciados pelas leis, isto é, que estas viessem a estabelecer distinções entre as pessoas independentemente do mérito.

"Constatou-se que a lei sempre discrimina. Por exemplo, o portador de um título acadêmico profissionalizante tem direito a desfrutar do privilégio (uma vez que os não portadores desse título não o podem fazer) de exercer uma determinada profissão, como a advocacia, medicina e outras.

"O problema, então, passou em constituir os limites da diferenciação possível de ser feita.

"Algumas discriminações, como aquela agora referida, sempre se legitimaram mito facilmente perante a sociedade. Parecia razoável que se reservasse essa profissão somente àqueles que tivessem seguido um aprendizado considerado suficiente para ministrá-la com conhecimento e segurança para os seus clientes. Outras, todavia, tentam se insinuar na ordem jurídica através de leis que vêm acompanhadas desta razoabilidade. Imaginemos que uma lei tentasse cobrar tributos de uma pessoa só por ela ser magra ou alta ou gorda. Uma lei com essas características seria repudiada pelo meio social que veria nela uma injustiça notória porque diferenciou em função de caracteres que nada têm a ver com as razões que podem racionalmente tornar compreensível a cobrança de um tributo.

"É este o sentido que tem a isonomia no mundo moderno. É vedar que a lei enlace uma conseqüência a um fato que não justifica tal ligação. É o caso do racismo em que a ordem jurídica passa a perseguir determinada raça minoritária, unicamente por preconceito das classes majoritárias. Na mesma linha das raças, encontram-se o sexo, as crenças religiosas, ideológicas ou políticas, enfim, uma série de fatores que os próprios textos constitucionais se incumbem de tornar proibidos de diferenciação. É dizer, não pode haver uma lei que discrimine em função desses critérios" (BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo: Atual., 1999, p. 159/182) (sem grifo no original).

Feriu, também, referida norma, o conteúdo da Lei Orgânica Municipal que, em seu art. 5º e 149, dispõe:

"Art. 5º. É vedado ao Município:

[...]

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si".

"Art. 149. [...]

§3º. A Administração pública direta, indireta e fundacional, é vedada a contratação de empresas que adotem práticas discriminatórias de sexo, credo, racismo e estado civil na contratação de mão de obra e que não cumpram a legislação específica sobre creches nos locais de trabalho".

Ao discorrer acerca da proibição de discriminação nos concursos públicos, Adilson Abreu Dallari preleciona:

"A questão dos requisitos que a lei poderá estabelecer como condições de provimento de cargos, funções e empregos públicos fica um pouco mais complicada diante da proibição expressa da utilização de sexo, idade, cor ou estado civil como critério de admissão, conforme consta do art. 7º, XXX, aplicável aos servidores públicos por determinação do art. 39, §2º, da CF.

"Entendemos que a Constituição veda restrições estabelecidas por mera discriminação, por puro preconceito. A enumeração de alguns fatores de discriminação no texto do dispositivo não significa que outros sejam tolerados. A relação é meramente exemplificativa, pois dela não consta a distinção por motivo de raça (implicitamente contida no inciso XLII, do art. 5º), que, além de ensejar as sanções normais a qualquer ato preconceituoso (sua nulidade, a responsabilidade funcional do agente) constitui crime inafiançável e imprescritível, punido com a pena de reclusão.

"Assim sendo, tanto o estabelecimento de condições referentes à altura, à idade, bem como ao sexo, poderão ser lícitos ou não, caso respeitem ou violem o princípio da isonomia, isto é, caso sejam ou não pertinentes, o que se verificará em cada caso concreto. Condição permanente será somente aquela ditada pela natureza da função a ser exercida, ou seja, circunstância, fator ou requisito indispensável para que a função possa ser bem exercida, o que não se confunde com a mera conveniência da administração, nem com preferências pessoais de quem quer que seja.

[...]

"Ressalvados os requisitos e capacidade civil e habilitação legal, toda e qualquer outra condição deve guardar total pertinência com o trabalho que vier a ser executado, sob pena de nulidade, pois a regra geral é a proibição de distinções puramente discriminatórias" (Regime Constitucional dos Servidores Públicos. 2 ed. (2º tiragem) 1992. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 32-34) (sem grifo no original).

Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua vez, ao dissertar acerca do princípio da isonomia ensina:

"IGUALDADE E OS FATORES SEXO, RAÇA, CREDO RELIGIOSO

Supõe-se, habitualmente, que o agravo à isonomia radica-se na escolha, pela lei, de certos fatores diferenciais existentes nas pessoas, mas que não poderiam ter sido eleitos como matriz do discrímen. Isto é, acredita-se que determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem colhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação, pena de se porem às testilhas com a regra da igualdade.

Assim, imagina-se que as pessoas não podem ser legalmente desequiparadas em razão da raça, ou do sexo, ou da convicção religiosa (art. 153, §1º, da Carta Constitucional) ou em razão da cor dos olhos, da compleição corporal, etc." (O Conceito jurídico do princípio da igualdade. 2 ed.1984. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 21).

Por concordar inteiramente com as razões lançadas pelo doutor Gustavo Emelau Marchiori, na decisão proferida nos autos do mandado de segurança n. 020.04.021781-7, que ensejou a presente argüição de inconstitucionalidade, adoto-as como complemento de minha razão de decidir:

"Do dicionário Aurélio de Língua Portuguesa extraímos o conceito das expressões racismo e segregação racial:

"Segregação racial.

"Política que objetiva separar e/ou isolar no seio de uma sociedade de minorias raciais e, p. ext., as sociais, religiosas, etc., discriminação racial.

"Racismo.

"3. Qualquer teoria ou doutrina que considera que as características culturais humanas são determinadas hereditariamente, pressupondo a existência de algum tipo de correção entre as características ditas 'raciais' (isto é, físicas e morfológicas) e aquelas culturais (inclusive atributos mentais, morais, etc.) dos indivíduos, grupos sociais e ou populações.

"Como se vê, as expressões racismo ou segregação racial definidas por um dos Dicionários mais respeitados da Língua Portuguesa excluem, de forma extreme de dúvidas qualquer tipo de implicação de que tais condutas possam ser direcionadas apenas aos negros, aos brancos, aos cafusos, mulatos, mamelucos ou qualquer outra espécie de raça humana. Praticar o racismo é contribuir através de atos e práticas, para a distinção pura e tão somente por este fato, pelo beneficiamento de um, em detrimento de outro.

"Não são os negros que estão sendo beneficiados, em verdade, co-meça, a sofrer um revés de um racismo camuflado existente na atualidade, que incute na mentalidade de alguns, que o caminho para a solução da miscigenação de raças existentes no Brasil e no Mundo pode ser solucionada por intermédio de leis e de incentivos inócuos para os fins a que se destinam.

"[...]

"Outro fato que causa estranheza diz respeito à limitação prevista na própria Lei Complementar n. 032/04, de que as vagas são destinadas apenas aos afro-brasileiros que prestarem concurso público para provimento de cargo efetivos. Porque aos afro-brasileiros não foi reservado igual percentual para os casos de contratação provisória ou cargos em comissão?

"[...]

"Por certo que a referida norma, por um de seus dispositivos, tratou de maneira desigual os iguais, pois não há distinção entre o inscrito na condição de afro-brasileiro e a impetrante, a não ser racial. E, sendo assim, encontra óbice na Constituição da República Federativa do Brasil, seja quanto aos seus objetivos, seja quanto aos direitos e garantias individuais do cidadão brasileiro". (fls. 346-348).

Mesmo que, in casu, não se esteja negando o acesso, mas sim, facilitando, na medida em que se reserva vagas para os descendentes afro-brasileiros, é inegável tratar-se de espécie de discriminação, haja vista partir do pressuposto de que há distinção entre os brancos e os afro-descendentes.

Ante o exposto, com fundamento nos argumentos expostos e precedentes colacionados, julgo procedente o pedido e reconheço a inconstitucionalidade do art. 5º, caput e parágrafo único, da Lei n. 032/2004, do Município de Criciúma (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2005.021645-7).

Bem se sabe que:

A decisão plenária - além do efeito que surte direta e imediatamente sobre o caso concreto em que foi suscitado o incidente de argüição de inconstitucionalidade - extravasa os autos em que foi proferida, apesar de ficar restrita aos muros do tribunal julgador. Se, por um lado, a decisão plenária não tem a eficácia erga omnes de uma ação direta de inconstitucionalidade, por outro, vincula a todos os órgãos fracionários do tribunal. Decidida a questão constitucional pelo tribunal pleno, os demais feitos que guardam a mesma quaestio iuris constitucional devem ser julgados, pelos órgãos fracionários do tribunal, à luz do leading case plenário (AMARAL JÚNIOR. José Levi Mello do. Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 79).

É o que dispõe o Regimento Interno desta Corte:

Art 160 - A decisão declaratória, ou denegatória da inconstitucionalidade, se unânime, torna-se, para o futuro, de aplicação obrigatória aos casos análogos, pelas Câmaras, salvo se qualquer destas, por motivo relevante, achar necessário provocar novo pronunciamento do Tribunal Pleno sobre a matéria.

Vale dizer, diante da parte final do preceito em tela, que é de dispensável nova submissão da matéria ao Tribunal Pleno, diante da absoluta convicção de que a lei complementar municipal é, de fato, inconstitucional.

Não se nega o valor das leis que objetivam a proteção das minorias. O que não se pode admitir é a generalização indiscriminada, arbitrária e gritantemente ofensiva ao princípio da igualdade.

Coerente e valioso estudo sobre o tema consta de texto elaborado por Felipe de Melo Fonte (disponível em http://lpp-uerj.net/olped/AcoesAfirmativas/exibir_opiniao.asp?codnoticias=14190), no qual se discorre a respeito de lei estadual que instituiu as cotas para negros e pardos no ensino superior público do Estado do Rio de Janeiro.

Malgrado a diversidade das hipóteses, os argumentos ali expostos aplicam-se inteiramente ao presente caso, pelo que serão a seguir transcritos in verbis:

Introdução

A efetivação da lei nº 3.708/2001, que instituiu a reserva de cotas no ensino superior público do Estado do Rio de Janeiro, está proporcionando um profícuo debate sobre o estado da discriminação racial na sociedade brasileira. A referida lei vem servindo como um sinal de alerta: as medidas corretivas devem ser tomadas em caráter emergencial, mas quais devem ser essas medidas?

Não é objetivo do presente trabalho debater medidas para tornar a sociedade brasileira mais justa, mas sim discutir a validade jurídica da solução adotada pela lei supracitada.

O estudo é jurídico, embora o tema abordado, bem se sabe, seja bastante eclético dentro das ciências sociais, é justamente por esta razão que procuramos não nos ater aos manuais de direito. Sem embargo, entretanto, da tarefa de apresentar uma opinião sólida sobre a validade ou não da reserva de vagas.

Para realizar tal estudo valemo-nos, primeiramente, de um histórico sobre os fatos. É o nosso escorço fático sobre o assunto em comento, uma visão panorâmica sobre a reserva de vagas.

Nossa segunda parada é no Direito. Tanto as opiniões favoráveis quanto as desfavoráveis à reserva de vagas passam pela interpretação do direito à igualdade, positivado pela Constituição Federal. É justamente esse o ponto principal do trabalho: qual interpretação é razoável? Será aquela que vê na igualdade a justificativa para a lei de cotas ou, pelo contrário, o princípio da igualdade eiva de inconstitucionalidade a lei de cotas?

Por fim, por todo o exposto, oferecemos nossa conclusão, em tom bastante crítico, acerca do tema em explanação.
--------------------------------------------------------------------------------
2. Escorço Fático

A sociedade brasileira, de origem agrária, elitista, latifundiária e oligarca, passa por um momento ímpar, que se traduz na tentativa de sanar a enorme desigualdade social, resultante daquela construção histórica, existente no país.

Esse movimento não é fruto do acaso. Há tempos vêm surgindo movimentos de todas as espécies - destaque-se aí o papel das organizações não-governamentais - na defesa dos ditos "socialmente excluídos". E a afirmação paulatina e constante desses excluídos chegou a tal ponto que, v.g., podemos encontrar desde revistas a cremes especializados para a população negra.

Tal movimento culminou na quebra de tabus históricos, como a eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nordestino de origem paupérrima. Outra importante marca contra a segregação racial deu-se com a recente ocupação do cargo de Governadora do Estado do Rio de Janeiro pela Sra. Benedita da Silva, mulher, negra e ex-moradora de favela, que atualmente é Ministra de Estado. Tais exemplos são verdadeiros ícones na história de um país mestiço que sempre foi governado por uma pequena casta de brancos.

Na esteira da nova onda, e inspirados na affirmative action (Ação Afirmativa) da sociedade norte-americana, os políticos fluminenses resolveram fazer sua parte para dar um basta na discriminação racial. Para tal, aprovaram a Lei Estadual Ordinária nº 3.708 de 09 de novembro de 2001, que, num texto por deveras lacônico, destina quarenta por cento das vagas nos cursos do ensino superior estadual aos negros e pardos, in verbis:

"Art. 1º - Fica estabelecida a cota mínima de até 40% (quarenta por cento) para as populações negra e parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e da Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF.

Parágrafo único - Nesta cota mínima incluídos também os negros e pardos beneficiados pela Lei nº 3524/2000.

Art. 2º - O Poder Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 30 (trinta) dias de sua publicação.

Art. 3º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 09 de novembro de 2001

ANTHONY GAROTINHO
Governador"

A lei permaneceu em suspenso, aguardando por regulamentação, tendo sido, à época, alvo de debates tímidos. De forma geral, os reitores e a comunidade acadêmica posicionaram-se contra a reserva de vagas nas instituições públicas. Poucos acreditaram que a lei "pegaria".

No interregno entre eficácia e ineficácia, o plano contra a discriminação passou incólume pela opinião pública. Então, veio o decreto do ex-Governador Anthony Garotinho, regulamentando a Lei e tornando possível que as referidas universidades pusessem em prática a reserva de vagas já no vestibular 2003.

Destarte, foi estipulado no formulário de inscrição no vestibular um campo onde o requerente deveria marcar caso negro ou pardo. Não havia indicação de critérios para dizer se uma pessoa é negra ou parda. Também não foi estipulada punição para as pessoas que, não estando dentro do critério, declararam-se como tais

Bastou, então, que o primeiro branco "declarado" fosse reprovado no vestibular, dando seu lugar para um negro ou pardo, para que a lei de cotas fosse transformada em cáustica questão, presente em toda mídia.

No dia 19 de fevereiro de 2003, conforme noticiado pelo jornal O GLOBO do dia subseqüente, foi deferida a segunda liminar em mandado de segurança para garantir a matrícula de um aluno que, tendo sido eliminado dentro das vagas "para brancos", seria classificado caso o concurso não tivesse o sistema de cotas. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro também está se mobilizando para entrar com ações de vários candidatos prejudicados pelo sistema de cotas.

Outrossim, veja-se a seguinte declaração de José Antônio Teixeira, Presidente do Sindicato das Escolas Particulares do Estado do Rio, conforme veiculado pela Agência Estado (www.estadao.com.br) em 19 de fevereiro de 2003: "A decisão [de ajuizar Ação Direita de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal] está tomada e é irreversível. As federações de todos os Estados aprovaram e agora vamos conversar com advogados para questionar, até sexta-feira, essa afronta à Constituição".

E a notícia prossegue: "A Uerj divulgou nota nesta quarta à noite, em que "reconhece o direito de qualquer cidadão ou instituição da sociedade civil organizada de recorrer à Justiça", mas afirma que vai contestar: "É legítimo que a universidade apresente sua defesa dentro dos prazos legais estabelecidos - e assim o fará. Cabe ressaltar, no entanto, que a Uerj não é a autora da legislação sobre as cotas, porém é obrigada a implementá-las"."

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro já expressou publicamente sua preocupação com o inchamento dos cursos, já que tanto os aprovados pelo sistema de cotas quanto os que obtiveram liminar em mandado de segurança serão incluídos nas turmas que se iniciam em 2003.

É em meio a essa guerra de estudantes, que promete ainda longos capítulos de angústia e sofrimento, que passamos a analisar a juridicidade da reserva de vagas.

3. Aspectos Jurídicos

A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo conjunto de valores para a sociedade brasileira, dentro os quais incluem-se a valorização dos direitos humanos e o combate a todos os tipos de discriminação, conforme preceituado já no preâmbulo da Lei Maior:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)"

Em outra passagem o texto é ainda mais explícito, pois vejamos:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Com efeito, da leitura preliminar do texto constitucional pode-se inferir que é vedado ao legislador ordinário instituir preconceito de raça ou cor, sendo, portanto, patente a incompatibilidade entre a Constituição e a lei de cotas, esta última que faz consagrar uma discriminação por raça.

Entretanto, há um princípio constitucional de enorme valor a ser considerado, trata-se do direito à igualdade. A priori, a igualdade - também constitucionalmente assegurada - é o principal argumento dos prejudicados pelo sistema de cotas, mas pode-se vislumbrar o conceito de igualdade exercendo função completamente oposta, justificando a lei de cotas. Esse é um raciocínio simples, que vem desde Aristóteles, vejamos:

"Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes de desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais)" (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Trad. de Pietro Nasseti - São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 109).

Em outros termos, tratar desiguais de forma desigual é um pressuposto de justiça. Dizer que o filho de uma empregada doméstica, moradora de favela, e o filho de um desembargador, morador da zona sul, devem ser tratados em igualdade plena, só pode ser uma teratologia jurídica e moral.

Entretanto, o que garante aos legisladores que o filho da empregada é negro ou pardo e o filho do desembargador é branco? Não há essa garantia, e disto resulta a primeira grande questão da lei de cotas. Sendo uma lei criada para criar maiores oportunidades aos economicamente desprivilegiados, o tiro pode acabar saindo pela culatra: haverá um duplo privilégio para o negro ou pardo abastado. O problema poderia ser sanado com uma técnica legislativa um pouco mais apurada. É curioso que a isenção do pagamento de inscrição no vestibular é para os pobres, mas as cotas são para os negros ou pardos.

O fato de ser negro, pardo ou branco, por si só, não é um fator que define a condição econômico-social do cidadão. É claro que a população negra e parda tem um histórico de marginalidade muito maior que a população branca, mas isso não significa que se possa fazer generalização, ainda mais quando se toca num aspecto tão delicado das sociedades democráticas, qual seja, a igualdade entre os cidadãos.

A opinião dos doutrinadores sobre o princípio da igualdade segue este mesmo raciocínio, veja-se a escólio de Alexandre de Moraes, um dos grandes constitucionalistas brasileiros:

"A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos" (Direito Constitucional, 11ªed., São Paulo: Atlas, 2002, p. 64).

De forma mais direta, diz ele:

"O que se veda são diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas" (op. cit..P. 64)
José Afonso da Silva, no seu clássico curso de Direito Constitucional, também dá sua lição sobre a igualdade jurídica:

"A constituição de 1988 abre o capítulo dos direitos individuais com o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput). Reforça o princípio com muitas outras normas sobre a igualdade ou buscando a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais substanciais" (Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: 2001, p. 214-215).

E prossegue o douto constitucionalista:

"Nele [no texto constitucional] se encontra, também, o reconhecimento de que o preconceito de origem, raça e cor especialmente contra os negros não está ausente das relações sociais brasileiras. Disfarçadamente ou, não raro, ostensivamente, pessoas negras sofrem discriminação até mesmo nas relações com entidades públicas" (op. cit., p. 227).

Como se percebe, há uma certa mitigação do princípio da igualdade. É perfeitamente admissível que a lei faça discriminações desde que calcada em justificativa objetiva e razoável, observados os juízos valorativos normalmente aceitos, bem como a relação de proporcionalidade entre meios e fins a ser atingidos.

Exempli gratia, o concurso público para a Policia Militar faz discriminação por peso e idade. Perguntamos, então: é justo? É razoável? Claro! Todo cidadão concorda que a força - ou ao menos o aspecto físico avantajado - é característica fundamental para o profissional que lida com a criminalidade. Um policial incapaz de correr será quase que completamente inútil numa situação de risco. Há discriminação nesse concurso, mas é perfeitamente razoável e não atenta contra a ordem constitucional.

Por outro lado, façamos o mesmo questionamento em relação à lei de cotas. A justificativa para sua criação é nobre, por tratar de medida de combate à discriminação, mas não é objetiva: o que garante que negros ou pardos, oriundos de péssimos colégios - públicos, diga-se de passagem -, conseguirão subir socialmente ao cursar uma universidade pública? Não há essa garantia. Também não é razoável, pois que, como já dito, características físicas, como cor de pele ou raça, não têm quaisquer relações com características sociais.

Um terceiro aspecto a ser considerado é o seguinte: a lei de cotas é inviável, dados os termos em que a Constituição Federal aborda a questão. Se a Carta Magna diz que não pode haver preconceito, é porque assim deve ser. A primeira medida para a validade das cotas é uma emenda à Constituição, não uma lei ordinária estadual. Não se deve malferir a Constituição e o Estado de Direito simplesmente porque querem atingir objetivo nobre. Luís Roberto Barroso, comentando a força normativa da Constituição, asseverou:

"Embora resultantes de um impulso político, que deflagra o poder constituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é documento jurídico. E as regras jurídicas, tenha ou não caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataformas políticas" (O Direito Constitucional e Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 60).

Em excelente ensaio sobre a posição dos afro-brasileiros na educação brasileira, o sociólogo Ahyas Siss já constatava a impossibilidade jurídica para o sistema de cotas:

"Na nossa última Constituição Federal, muito embora esteja estabelecido ser o racismo um crime inafiançável e imprescritível, não incorporou o princípio da ação afirmativa (ou assistência compensatória, na versão americana) através do qual reconhecia-se que os afro-brasileiros, "submetidos à exploração e a dominação, eram credores de uma assistência especial por parte do Estado [dito] democrático para igualarem-se aos brancos na raia da competição" (Rufino s/d)" (A educação e os afro-brasileiros: algumas considerações, in Educação e Cultura; pensando em cidadania/Maria Alice Gonçalves (org.) - Rio de Janeiro: Quartet, 1999).

O mesmo sociólogo prossegue criticando a Constituição:

"Qualquer leitor dessa Constituição pode concluir, sem maiores esforços, que, excetuando-se a população indígena nacional, o restante da população brasileira é culturalmente homogêneo e racialmente branco. Explicita-se assim uma tentativa de reduzir-se constitucionalmente à invisibilidade o segmento populacional afro-brasileiro. Tal é a letra e tal o "espírito" dessa carta constitucional" (op. cit).

Pedimos vênia para discordar do sociólogo, pois entendemos que a tentativa de homogeneizar a sociedade brasileira é positiva, desde que não implique em imposição. A as dicotomias favorecem a discriminação, deixando de lado o objetivo fundamental de acabar com o Brasil dos "civilizados" separado do Brasil dos "excluídos". É preciso, dessarte, que negros e brancos sejam, antes de tudo, cidadãos brasileiros, com todos os direitos e deveres que tal estado concede.

Conforme já disse José Afonso da Silva, a Constituição estava atenta ao problema do racismo. Não foi por outro motivo que assegurou para todos os cidadãos o direito à educação. Já que o acesso ao ensino é direito subjetivo público, então para quê o texto constitucional instituiria o sistema de cotas?

Colacione-se, portanto, a lição de José Afonso da Silva sobre o acesso à educação:

A norma, assim explicitada - "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família (...)" (arts. 205 e 227) -, significa, em primeiro lugar, que o Estado tem que aparelhar-se para fornecer, a todos, os serviços educacionais, isto é, oferecer ensino, de acordo com os princípios estatuídos na Constituição (art. 206); que ele tem que ampliar cada vez mais as possibilidades de que todos venham a exercer igualmente esse direito; e, em segundo lugar, que todas as normas da constituição, sobre educação e ensino, hão que ser interpretadas em função daquela declaração e no sentido de sua plena e efetiva realização (op. cit.,
p. 227).

Como se não bastasse a simples e evidente constatação da inconstitucionalidade da lei de cotas, o sistema adotado para aferição dos candidatos negros e pardos é simplesmente pífio. Na verdade, a lei não beneficia os negros ou pardos, mas sim os autodeclarados negros ou pardos, e entre estes e aqueles existe um grande abismo para os aproveitadores. Em suma, ao dar azo para a fraude, a lei causa sérios danos aos estudantes que efetivamente se dedicaram para a realização das provas do vestibular.


4. Conclusão

O brasileiro assiste estupefato o racismo europeu, asiático, africano e norte-americano, dando graças a Deus por viver num país plural e pacífico. Acredita, cegamente, que o Brasil de hoje é fruto da mistura saudável da malandragem do negro africano, da esperteza do branco europeu e da beleza do ameríndio. E essa crença serve de alicerce para a paz social. Mas, até quando?

O Brasil vive uma espécie de racismo muito pior que o vivido pelos europeus: é o racismo velado. Que ataca aos sussurros, sem gritar, sem aparecer na mídia. Se perguntarmos na rua se o Brasil é um país racista, é deveras provável que ganhemos várias negativas como resposta. Mas ninguém questiona o motivo pelo qual os negros façam sempre os papéis de escravo, nos filmes, e serviçais, nas novelas. Tampouco se pergunta porque que nas melhores faculdades do Brasil a presença de negros só não é mais rara que o mico-leão dourado.

Bem, se ninguém perguntou, façamos agora: porque será que só tem brancos nas boas faculdades? Será que os brancos possuem intelecto superior? Resta óbvio que não. Uma resposta em contrário seria o mesmo que dizer que os negros que moram em favelas fazem-no por opção, porque vêem no alto do morro um lugar ótimo para morar. Ou, pior: talvez porque o papel de serviçal ou escravo, na concepção deles, seja mesmo os melhores.

Assente a noção de que há discriminação na sociedade, nada mais justo que tentar reduzi-la. Mas, se a discriminação existe e as políticas para ameniza-la são tão necessárias, como a reserva de vagas para negros e pardos conseguiu amontoar tantos opositores?

É porque na política brasileira sempre se procura resolver as coisas da maneira mais fácil, de preferência de um jeito bastante populista, que renda votos. Se o Brasil tem fome, façamos restaurantes populares. Se a criminalidade está em alta, mandemos a polícia dar porrada e matar favelado. Se a Universidade Pública exige um bom nível do aluno, façamos o nível baixar.

Esse é o primeiro erro da reserva de vagas: ela não leva o aluno à universidade, mas faz o contrário, leva a universidade ao aluno. Não é o aluno negro, carente, vindo de escolas ruins que melhorou o seu nível de aprendizado, mas a universidade que reduziu seus requisitos para colocar esse aluno lá. Trata-se de uma boa justificativa para uma péssima idéia: vamos acabar com a discriminação colocando, na marra, o aluno negro na universidade pública.

A primeira conseqüência disto será a dificuldade em adequar esses novos estudantes ao ritmo da universidade pública, acostumada que está com alunos muito bons. Mas não se diga que a adequação deverá ser feita só pelos professores - e estes precisarão reavaliar seu projeto pedagógico -, os alunos terão sua parte nessa empreitada. Imaginemos que estranha sala será aquela onde se misturam alunos preparadíssimos e outros nem tanto. É mais ou menos como dar computadores de última geração a duas pessoas: uma delas tem inúmeros cursos de informática e a outra está acostumada com máquina de escrever, será que o resultado será o mesmo?

Equivocam-se nossos políticos ao achar que todo branco é rico e que todo negro é pobre. Equivocam-se, igualmente, por acreditar que colocar um negro na universidade pública será o passaporte para seu futuro melhor. Quando for percebido que o remédio escolhido para acabar com a discriminação não faz efeito, quando a formação universitária não for suficiente para garantir o sucesso pessoal de cada um - e, realmente, não é apenas a universidade que garante isso -, então vamos esperar que façam uma reserva de vagas para negros na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Será que essa Lei virá?

O dever do Estado de acabar com a discriminação deveria percorrer o caminho óbvio e difícil, que é o de dar uma boa educação no ensino primário - aquele que não reprova - e no ensino médio - aquele onde os professores ganham uma miséria. Não é preciso mágica, tampouco gambiarras ou esmolas. Todos sabem: a boa educação global é o caminho mais viável para garantir a todos os cidadãos um futuro melhor. E a boa educação não começa no ensino superior, aí já é tarde demais.

Ademais, a boa educação não deve ser um privilégio, seja de pobres ou ricos. Não é preciso ser um gênio para dizer que o bem mais precioso de cada cidadão é o seu conhecimento. E enquanto a política nacional de educação atropelar o conhecimento, acreditando que só o diploma salva, vamos precisar reservar muito mais do que vagas para que os excluídos tornem-se parte da mui igualitária sociedade brasileira.

Na realização de políticas afirmativas, melhor andou o Itamaraty. Como é sabido, o Brasil jamais teve um diplomata negro. Com vistas a sanar tal situação, o Ministério das Relações Exteriores concedeu várias bolsas de estudos para que negros fizessem as provas nas mesmas condições que os brancos. É claro que, por se tratar de uma área estratégica nacional, não se pode simplesmente abrir vagas para despreparados. Mas, se o raciocínio funcionou tão bem para o MRE, porque não foi igual para a universidade? Fica a pergunta.

À luz de todo o exposto, a procedência do pedido veiculado na ação ordinária era mesmo de rigor, uma vez que, consoante registrado no veredicto guerreado, que vem corroborado pelo acervo probatório, a autora, ora interessada, obteve a pontuação necessária para ser aprovada no concurso público e, caso forem satisfeitos os pressupostos necessários a tanto, para ocupar uma das vagas previstas.

Daí o improvimento do recurso de apelação.

DECISÃO

Ante o exposto, a Câmara decidiu, por votação unânime, desprover o recurso.

O julgamento, realizado no dia 21 de outubro de 2008, foi presidido pelo Exmo. Sr. Newton Trisotto, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz. Lavrou parecer, pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Paulo Cezar Ramos de Oliveira.

Florianópolis, 24 de novembro de 2008.

Vanderlei Romer

Relator


Gabinete Des. Vanderlei Romer