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TJSC Jurisprudência Catarinense
Processo: 0044156-68.2022 (Acordão do Conselho da Magistratura)
Relator: Gerson Cherem II
Origem: Blumenau
Orgão Julgador:
Julgado em: 05/09/2023
Classe: Recurso Administrativo

 

ACÓRDÃO



Suscitação de Dúvida n. 0044156-68.2022.8.24.0710



Relator: Des. Gerson Cherem II   



PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. 2º OFÍCIO DO REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE BLUMENAU. PLEITO DE USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. SENTENÇA DE ACOLHIMENTO DA DÚVIDA. RECURSO DOS INTERESSADOS.



FALTA DE INTERESSE DE AGIR. PRETENSÃO CLARA DE DESMEMBRAMENTO DO IMÓVEL POR MEIO DA USUCAPIÃO. IMPOSSIBILIDADE. CONTRATO DE COMPRA E VENDA FIRMADO COM OS PROPRIETÁRIOS REGISTRAIS DO BEM. AUSÊNCIA DE ÓBICE À TRANSFERÊNCIA DO IMÓVEL, AINDA QUE POR AÇÃO JUDICIAL. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. SENTENÇA MANTIDA.



RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.   



              Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Administrativo n. 0044156-68.2022.8.24.0710, da Comarca de Blumenau, em que são recorrentes Rudibert Vogel e Neusa Franz Vogel e recorrida Franciele Moscon Ferreira (Oficiala Substituta do 2° Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau).



              O Conselho da Magistratura decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento. Custas pelos interessados, nos termos do art. 207, da Lei n. 6.015/73.



              O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador João Henrique Blasi, com voto, e dele participaram os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Gilberto Gomes de Oliveira, Luiz Antônio Zanini Fornerolli, Rubens Schulz, Altamiro de Oliveira, André Carvalho e Cláudia Lambert de Faria.



              Participou como representante do Ministério Público a Drª. Cristiane Rosália Maestri Böell.



              Florianópolis, 10 de julho de 2023.  



Gerson Cherem II 



RELATOR  



RELATÓRIO  



              Trata-se de recurso administrativo interposto por Rudibert Vogel e Neusa Franz Vogel, contra a sentença prolatada pelo Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública, Acidente do Trabalho e Registro Público da Comarca de Blumenau que, nos autos da suscitação de dúvida apresentada pela Oficiala Substituta do 2° Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau, Srª. Franciele Moscon Ferreira, acolheu a dúvida, embora tenha equivocadamente constado no dispositivo a improcedência de dúvida inversa, nos seguintes termos (Decisão 6900732):



              Ante o exposto, nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, resolvo o mérito da lide e julgo improcedente a suscitação de dúvida inversa, para manter a exigência registral.



Sem custas judiciais, nos termos do Art. 207 da Lei nº 6.015/73.



Publique-se. Registre-se. Intimem-se.



Transitado em julgado, cumpridas as formalidades legais, cientifique-se a Oficiala Registradora do 2º Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau/SC, e, após, arquivem-se com as cautelas de estilo.  



              Inconformados, os interessados alegaram, em síntese, que estariam presentes os requisitos para aquisição da propriedade por meio da usucapião extrajudicial, ressaltando não haver outro modo de regularizar a área (6943591).



              Com contrarrazões (6999161), o feito foi remetido à douta Procuradoria-Geral de Justiça, que, em parecer da lavra do Dr. Alexandre Herculano Abreu, entendeu não haver interesse público que justificasse a intervenção do Parquet, deixando de manifestar-se no mérito (7275097).



              É o relatório.



              Os recorrentes visam à reforma do decisório que acolheu a suscitação de dúvida, reconhecendo como escorreito o entendimento da Oficiala Registradora do 2º Ofício de Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau, a qual declarou a inviabilidade do procedimento de usucapião, por tratar-se de aquisição derivada da propriedade.



              Argumentam os insurgentes o cabimento do instituto, pois não seria possível a regularização da propriedade por outros meios, porquanto o imóvel adquirido (parcela de terreno maior) não possui matrícula individualizada, inviabilizando a adjudicação compulsória. Esclarecem que eventual ação cominatória para obrigar o proprietário ao desmembramento e regularização da área estaria prescrita.



              Melhor sorte não socorre os recorrentes.



              A usucapião "é a forma originária de aquisição da propriedade pelo exercício da posse com animus domini, na forma e pelo tempo exigidos pela lei" (Nery, Junior Nelson. Código Civil Comentado. 8ª ed. 2011, p. 985, grifou-se).



              Modestino, em seu clássico conceito sobre o instituto, define que "usucapio est adjectio dominii per continuationem possessionis temporis lege definit (usucapião é o modo de adquirir a propriedade pela posse continuada durante certo lapso de tempo, com os requisitos estabelecidos em lei)" (Gama, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos Reais. 2011, p. 318).



              Para a aquisição do bem mediante a usucapião, deve o postulante comprovar o cumprimento dos seguintes requisitos formais: a) posse mansa e pacífica, livre de qualquer oposição; b) transcurso ininterrupto do lapso previsto na lei; c) manifesta intenção de ter a coisa como dono (animus domini); d) boa-fé.



              Na hipótese, buscam os interessados adquirir a propriedade da área com 674,32 m², originada de um todo maior matriculado sob n. 30.517, no 2º Ofício do Registro de Imóveis da Comarca de Blumenau. O pleito está fundado na posse mansa e pacífica da referida área, adquirida em 17.11.2004, nos termos do contrato de compra e venda juntado aos autos (6749746 - fls. 15/20).



              A pretensão, todavia, mostra-se descabida, pois emerge incontestável que objetivam os insurgentes, em verdade, o desmembramento da área matriculada sob o n. 30.517, intento que não pode ser admitido na via da usucapião, como corretamente entendeu a Oficiala e foi ratificado pela sentença.



              Com efeito, verifica-se que os recorrentes adquiriram o imóvel em comento diretamente dos proprietários registrais do terreno maior, Srª. Irene Knoth (hoje falecida), Srª. Iria Knoth Arndt e seu marido Sr. Norberto Arndt, Sr. Osni Knoth e sua esposa Srª. Arlete Sueli Wanzuita Knoth, Srª. Seli Eger e seu marido Sr. Ricardo Eger, e Srª Eleonora Knoth. O fato, por si só, configura a aquisição derivada e reveste-se de força suficiente para o indeferimento da usucapião (instituto exclusivo para aquisições originárias).



              Ora, se os interessados adrede detêm título aquisitivo do imóvel (contrato particular de compromisso de compra e venda), cabe-lhes individualizar tal unidade autônoma para obter, então, a almejada matrícula.



              Dessarte, por ser a usucapião um modo de aquisição originária da propriedade, seu manejo não se harmoniza com a pretensão de regularizar o domínio do bem adquirido, repita-se, por via derivada, com vínculo contratual direto e imediato entre os usucapientes e os proprietários registrais.



              Este Conselho da Magistratura teve oportunidade de manifestar-se, em caso símil, em que adquirida parcela do mesmo imóvel maior (matrícula 30.517):



CONSELHO DA MAGISTRATURA. RECURSO ADMINISTRATIVO. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS. USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. PROCEDÊNCIA DA DÚVIDA E RECUSA DE REGISTRO. RECURSO DOS INTERESSADOS. FRAÇÃO ADQUIRIDA DE IMÓVEL MAIOR, POR CONTRATO DE COMPRA E VENDA. INEXISTÊNCIA DE ÓBICE JURÍDICO E CONCRETO À TRANSFERÊNCIA IMOBILIÁRIA OU MESMO PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL. FACILIDADE E DESBUROCRATIZAÇÃO DA USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL QUE NÃO LEGITIMA O PEDIDO. PRETENSÃO DE TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA, POR MEIO DA USUCAPIÃO, SEM OS REQUISITOS CONSTANTES DO PROVIMENTO CNJ N. 65/2017. PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL. INADEQUAÇÃO. TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE QUE DEVE SER FEITA POR ESCRITURA PÚBLICA OU AÇÃO JUDICIAL QUE SUPRA A VONTADE DOS PROMITENTES VENDEDORES. ÓBICE À ESCRITURAÇÃO REGULAR DA TRANSMISSÃO IMOBILIÁRIA NÃO DEMONSTRADO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.



Embora possível o reconhecimento da usucapião por meio de procedimento extrajudicial, essa permissão exige pressupostos específicos constantes do Provimento CNJ n. 65 de 2017, que impede a usucapião extrajudicial quando não houver demonstração de óbice à regular escrituração, utilização da usucapião como meio de burla do sistema notarial e registral, assim como o regular pagamento de tributos incidentes sobre o negócio jurídico, conforme o art. 13, § 2º, do referido provimento.



Não é a usucapião extrajudicial meio adequado para a declaração da propriedade e aquisição originária junto ao Cartório de Registro de Imóveis se os interessados dispõem de contrato de promessa de compra e venda e o pedido está fundado em mera conveniência baseada na recusa imotivada dos promitentes vendedores à formalização de escritura pública, o que deverá ser contornado mediante ação judicial específica. (RA n. 0031978-24.2021.8.24.0710, rel. Des. Altamiro de Oliveira, j. em 14.06.2022).  



              Embora os recorrentes apontem entrave à regularização da propriedade, porquanto o imóvel não estaria individualizado -- o que impediria o sucesso de uma adjudicação compulsória --, bem como porque supostamente acobertada pela prescrição eventual ação cominatória visando ao desmembramento, tais fatos, além de hipotéticos, emergem insuficientes para acobertar irregularidades na forma de parcelamento do solo e autorizar a usucapião.



              A adjudicação compulsória só pode ser admitida para a outorga da escritura definitiva de compra e venda em imóvel devidamente individualizado, com matrícula própria no respectivo Ofício de Registro de Imóveis. Todavia, a obtenção da tal matrícula, mediante ação cominatória intentada contra os proprietários para obrigá-los ao desmembramento da gleba maior não é suscetível de prescrição, justamente para possibilitar-se a regularização do bem pelas vias corretas, sem burla ao sistema de registro de imóveis.



              Nesse sentido:



APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. PROMITENTES COMPRADORES QUE PRETENDEM OBRIGAR O PROMITENTE VENDEDOR A PROCEDER AO DESMEMBRAMENTO E À OUTORGA DE ESCRITURA DEFINITIVA DE COMPRA E VENDA DO IMÓVEL. SENTENÇA QUE, PRELIMINARMENTE (ART. 337, § 2º, CPC), RECONHECE A PRESCRIÇÃO DOS PEDIDOS. INSURGÊNCIA DOS AUTORES. OBRIGAÇÃO DE DESMEMBRAMENTO MERAMENTE ACESSÓRIA À DE OUTORGA DE ESCRITURA DEFINITIVA DE COMPRA E VENDA. PLEITO QUE SE APROXIMA DE UMA TÍPICA DEMANDA DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA, NA FORMA DA PRIMEIRA PARTE DO ART. 1.418 DO CÓDIGO CIVIL. DIREITO POTESTATIVO À CONSTITUIÇÃO DE UM DIREITO REAL, NÃO SUJEITO, PORTANTO, AO INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO. PRECEDENTES DO STJ E DESTA CORTE. DECISUM DESCONSTITUÍDO. RECURSO PROVIDO. (AC n. 0303017-41.2018.8.24.0019, rel. Des. Saul Steil, j. em 31.08.2021). (Grifou-se).



 
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DOS RÉUS (PROMITENTES VENDEDORES) ADMISSIBILIDADE. PEDIDO DE JUSTIÇA GRATUITA. HIPOSSUFICIÊNCIA DEMONSTRADA. BENESSE DEFERIDA NESTE GRAU RECURSAL APENAS PARA FINS DE ISENÇÃO DO PREPARO E DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DOS HONORÁRIOS RECURSAIS.   PRELIMINARES. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DOS PROMITENTES VENDEDORES E CARÊNCIA DE AÇÃO. INSUBSISTÊNCIA. INEXISTENTE QUALQUER RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE O AUTOR E O TERCEIRO ADQUIRENTE DE BOA FÉ, ATUAL PROPRIETÁRIO REGISTRAL. RESPONSABILIDADE PELO DESMEMBRAMENTO E OUTORGA DE ESCRITURA PÚBLICA QUE RECAI SOBRE OS VENDEDORES, AINDA QUE NÃO DETENHAM MAIS A TITULARIDADE DO BEM. PREFACIAIS AFASTADAS. "A ação de adjudicação compulsória é o meio pelo qual o promitente comprador de bem imóvel, diante da recusa injustificada do promitente vendedor, requer lhe seja concedida a escritura pública definitiva de transferência do domínio. Logo, a legitimidade ativa ad causam pertence ao promitente comprador ou cessionário de direitos sobre o imóvel, desde que quitado o preço, enquanto o legitimado passivo é o proprietário que recebeu o preço do imóvel e faltou com seu dever de escriturá-lo. Portanto, só se habilita a figurar nos polos da demanda adjudicatória, e sofrer os efeitos da sentença, quem participou da relação jurídica de direito material" (Apelação Cível n. 0003479-90.2013.8.24.0037, de Joaçaba, rel. Des. Sebastião César Evangelista, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 16-11-2017).   PREJUDICIAL DE MÉRITO. PRESCRIÇÃO. DEMANDA CONSTITUTIVA DE NATUREZA REAL, DESTINADA À PROTEÇÃO DE DIREITO POTESTATIVO QUE NÃO SE SUJEITA À PRESCRIÇÃO OU À DECADÊNCIA, AINDA QUE CUMULADA COM PERDAS E DANOS. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTA CORTE.   MÉRITO DA LIDE. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA SENTENÇA POR SER ULTRA PETITA. JUÍZO A QUO QUE CONVERTEU A OBRIGAÇÃO DE FAZER EM PERDAS E DANOS, DE OFÍCIO, EM CASO DE IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DO PRECEITO COMINATÓRIO. DETERMINAÇÃO VIÁVEL, DE ACORDO COM O ART. 499 DO CPC. PRECEDENTES. INEXISTÊNCIA DO VÍCIO ALEGADO. PROMITENTES VENDEDORES QUE ASSUMIRAM A RESPONSABILIDADE PELO DESMEMBRAMENTO, OUTORGA DE ESCRITURA PÚBLICA E EVENTUAIS PERDAS E DANOS PERANTE A ATUAL PROPRIETÁRIA DO BEM IMÓVEL. ALUDIDA CONVERSÃO QUE SE APRESENTA COMO DESDOBRAMENTO NATURAL DA EVENTUAL IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO CONTRATUAL. SENTENÇA MANTIDA.    HONORÁRIOS RECURSAIS.  PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS. CABIMENTO. SUSPENSÃO, PORÉM, DA EXIGIBILIDADE DA VERBA POR SEREM OS AUTORES BENEFICIÁRIOS DA JUSTIÇA GRATUITA (ART. 98, § 3º, DO CPC).   RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (AC n. 0301755-37.2015.8.24.0027, relª. Desª. Cláudia Lambert de Faria, j. em 04.08.2020). (Grifou-se).  



              Ainda que assim não fosse, vê-se que desde o momento da aquisição, os interessados estavam cientes de que compraram diretamente dos proprietários registrais um terreno proveniente de parcelamento irregular do solo, tornando necessário, portanto, o desmembramento para a regularização.



              Durante as quase duas décadas que se sucederam à aquisição, inexistem provas de que os insurgentes tenham efetuado qualquer tentativa de regularizar o imóvel, senão a presente usucapião. Aguardaram, pois, o transcurso do prazo da prescrição aquisitiva e manejaram a usucapião extrajudicial. Promover-se agora a aquisição do imóvel por meio deste instituto seria, repito, laurear aqueles que inadvertidamente agiram em descompasso com o ordenamento jurídico, pretensão totalmente inadmissível, além de implicar na inobservância das regras necessárias à transmissão derivada da propriedade, inclusive com a indevida supressão de tributos.



              Dessarte, o reclamo não medra.



              Ante o exposto, voto no sentido de conhecer do recurso e negar-lhe provimento.