Apelação Cível n. 2007.025558-9, da Capital.


Relator: Des. Francisco Oliveira Filho.

TRIBUTÁRIO – DECLARAÇÃO DE ILEGALIDADE DA BASE DE CÁLCULO E REPETIÇÃO DE INDÉBITO – ICMS – FATO GERADOR – CONSUMO – ENERGIA ELÉTRICA UTILIZADA – DEMANDA RESERVADA DE POTÊNCIA – RES. 456/00 DA ANEEL – DISPONIBILIZAÇÃO DE POTÊNCIA SUFICIENTE PARA OS PERÍODOS DE ALTO CONSUMO – SERVIÇO PRESTADO SUBSIDIARIAMENTE À CIRCULAÇÃO DE MERCADORIA – ART. 155, IX, “B”, DA LEX MATER – INCIDÊNCIA – APELO PROVIDO.

Não obstante os iterativos pronunciamentos do colendo Superior Tribunal de Justiça sobre o matéria (REsp n. 222810/MG e REsp n. 343952/MG), existem na espécie duas questões não constantes da fundamen-tação: a distinção entre energia e potência e entre as tarifas monômias e binômias, nos termos da Res. n. 456/00 da ANEEL, que não é referida naqueles veredic-tos. Este fato, concessa venia, possibilita, sem ofensa ao acatamento e ao princípio da segurança jurídica, a adoção de entendimento diverso até mesmo, quando for a hipótese, de uma súmula persuasiva.
O termo demanda encontra-se vinculado à potên-cia, fluxo de energia suficiente para o funcionamento do estabelecimento durante um curto lapso temporal, enquanto o consumo relaciona-se com a energia con-sumida durante o mês e que é a mercadoria cobrada na fatura.
A contratação de demanda de reserva prevê a ga-rantia ao consumidor de que terá à sua disposição po-tência suficiente para operar no auge de seu funcio-namento industrial. Trata-se de valor desvinculado do efetivo consumo de energia mensal, não sendo circu-lação de mercadoria, mas sim um serviço prestado.
Ex vi do art. 155, IX, ‘b’, da Magna Carta, incide o ICMS “sobre o valor total da operação, quando merca-dorias forem fornecidas com serviços não compreen-didos na competência tributária dos Municípios”.
Conforme afirma o Excelso Pretório, “tal disposi-ção (art. 155, § 2º, IX, ‘b’) é autônoma em relação à do art. 155, I, ‘b’, da Constituição; regula, precisamente, as hipóteses em que mercadorias e serviços compõem uma operação mista, assim como sucede nos restau-rantes e bares, no instante em que a mercadoria é for-necida aos fregueses e por estes consumida no pró-prio estabelecimento, que lhes presta, desse modo, também, serviços” (RE n. 179853).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cí-vel n. 2007.025558-9, remetidos pelo Juízo de Direito da comarca da Capital (Unidade da Fazenda Pública), em que é apelante o Estado de Santa Catarina, sendo apelada Metalúrgica Mondelli Ltda. ME:
ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Público, por votação unânime, dar provimento ao reclamo para julgar improcedente o pedi-do inicial, sendo devida a verba advocatícia pelo contribuinte em R$ 1.000,00.

Custas legais.

Metalúrgica Mondelli Ltda. ME propôs ação declaratória negativa e condenatória em face do Estado de Santa Catarina, inconformado com a tributação de ICMS sobre a demanda de potência. Aduziu que esta não constitui operação de circulação de mercadoria, e que imposto deveria incidir apenas sobre a energia efetivamente consumida, postulando a declaração de ilegalidade desta cobrança e a devolução do indébito.
Documentos instruem a exordial.
Foi deferida a antecipação dos efeitos da tutela.
Em resposta, o Estado de Santa Catarina defendeu a base de cálculo adotada.
Após manifestação do Parquet, o ato compositivo da lide acolheu o pleito formulado na inicial.
Irresignado, apelou o vencido requerendo a reforma in to-tum do decisum.
Há resposta.
É o relatório.
Busca-se, na espécie, a declaração de ilegalidade da base de cálculo adotada pelo Estado de Santa Catarina para incidência do ICMS no fornecimento/aquisição de energia elétrica e a devolução dos valores suposta-mente cobrados de modo indevido.
É imprescindível que sejam feitas algumas considerações sobre certos aspectos técnicos atinentes à lide, com o intuito de diferenciar o consumo de energia de potência e demanda.
Isto porque a demanda de potência, contratada ou verifica-da, não prevê, data venia, o fornecimento de uma cota mínima de energia a que a consumidora teria direito, mas sim uma adequação no sistema de forne-cimento de energia e sua manutenção de modo que lhe pudesse assegurar uma potência necessária para o seu funcionamento industrial nos períodos de pico.
É que, em verdade, faz-se necessário destacar algumas definições atribuídas a cada um dos termos técnicos envolvidos na quaestio, consoante a Resolução n. 456/00 da Aneel:
“DAS DEFINIÇÕES
[..]
“VIII - Demanda: média das potências elétricas ativas ou reativas, solicitadas ao sistema elétrico pela parcela de carga instalada em operação na unidade consumidora, durante um intervalo de tempo específico.
“IX - Demanda contratada: demanda de potência ativa a ser obrigatória e continuamente disponibilizada pela concessionária, no ponto de entrega, conforme valor e período de vigência fixados no contrato de forne-cimento e que deverá ser integralmente paga, seja ou não utilizada durante o período de faturamento, expressa em quilowatts (kW).
“X - Demanda de ultrapassagem: parcela da demanda me-dida que excede o valor da demanda contratada, expressa em quilowatts.
[...]
“XII - Demanda medida: maior demanda de potência ativa, verificada por medição, integralizada no intervalo de 15 (quinze) minutos du-rante o período de faturamento, expressa em quilowatts (kW).
“XIII - Energia elétrica ativa – energia elétrica que pode ser convertida em outra forma de energia, expressa em quilowatts-hora (kWh).
[...]
“XXVII - Potência: quantidade de energia elétrica solicitada na unidade de tempo, expressa em quilowatts (kW).
“XXVIII - Potência disponibilizada: potência que o sistema elétrico da concessionária deve dispor para atender às instalações elétricas da unidade consumidora, segundo critérios estabelecidos nesta Resolução e con-figurada nos seguintes parâmetros:
“a) unidade consumidora do Grupo ‘A’: a demanda contra-tada, expressa em quilowatts (kW)”.
E, posteriormente, no artigo 49 desta mesma norma, des-taca-se que o faturamento da unidade consumidora será composto da deman-da de potência ativa, do consumo de energia elétrica ativa e, nos casos em que são firmados contratos, dos valores que excederem ao contratado.
Portanto, denota-se que a demanda refere-se à potência e não à energia, e que estas são grandezas distintas. A energia elétrica é a ‘mer-cadoria’ efetivamente consumida com a finalidade de manter em funciona-mento, durante o período desejado, uma máquina industrial, verbi gratia. Já a potência seria esta quantidade de energia necessária para cada momento, por um determinado espaço de tempo, para fazê-la funcionar. A demanda seria atrelada à potência e o consumo à energia.
Expõe-se a seguinte ilustração, nos termos do contrato: uma indústria possui cinco máquinas com demanda de potência equivalente a 20 kW (por um quarto de hora). Ao ligar todas ao mesmo tempo, alcançaria uma demanda de 100 kW. Esta seria, em tese, sua demanda máxima e a que poderia adotar como demanda contratada. Isto não implica a necessária utiliza-ção de todas as máquinas ao mesmo tempo e durante todo o mês, o que pro-vavelmente não irá ocorrer. Pode-se, inclusive, utilizar apenas quatro no mo-mento máximo da produção no mês. Contudo, caso fosse contratada uma de-manda de somente 80 kW e se optasse por ligar as cinco simultaneamente, correr-se-ia o risco de a fornecedora de energia não estar preparada para atender a demanda de 100 kW ou, se estivesse, ter-se-ia que pagar a deman-da de ultrapassagem sobre os 20 kW excedentes.
Noutro diapasão, supondo-se que, ainda na mesma hipó-tese, as cinco máquinas fossem ativadas conjuntamente e durante uma hora (tendo-se como potência para uma hora 400 kW), consumir-se-ia 400 kWh de energia. Com uma média diária de 1.000 kWh por vinte cinco dias de um mês, o consumo cobrado seria equivalente aos 25.000 kWh.
Em face disso, apenas os valores apresentados na fatura a título de consumo referem-se à energia efetivamente utilizada. O valor pago em razão da demanda contratada diz respeito ao serviço prestado no qual a forne-cedora de energia compromete-se a preparar e manter o sistema de forneci-mento no grau contratado para que a consumidora possa funcionar no nível de produção planejado. É despiciendo se verificar se foi atingida a demanda con-tratada. Aqui, diferente do que ocorre no consumo de energia, não se tem cir-culação de mercadoria.
O fato é que, mesmo em não se atingindo a demanda con-tratada no período máximo de funcionamento do mês, a fornecedora de ener-gia efetuaria os mesmos gastos, seja com a preparação ou manutenção do sistema elétrico para atender a alta necessidade da indústria, seja pela perda de energia verificada em seu transporte, ainda que não consumida. Destarte, não há diferença para ela, por ser um serviço prestado, se o consumidor atinge ou não a demanda contratada. A única diferença que poderia ser verificável seria no consumo, pois ao se trabalhar em uma potência um pouco menor, du-rante um período igual de tempo, consome-se menos energia.
Uma vez estabelecido que a demanda versa sobre potên-cia, e que esta não é consumida, apenas a energia, não há que se falar em circulação de mercadoria. Tal interpretação implicaria, realmente, bis in idem, pois se tributaria a circulação da energia no consumo mensal e aquela na qual a potência atinge seu período de pico, que também é inserida no consumo mensal. No entanto, o que existe é um verdadeiro serviço prestado.
Sendo assim, por se verificar que não há incidência de ISS sobre este serviço, ao não se enquadrar nas hipóteses previstas na Lei Com-plementar n. 116/03, deve-se aplicar o art. 155, IX, b, da Lex Mater:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal insti-tuir impostos sobre:
[...]
“IX - incidirá também:
[...]
“b) sobre o valor total da operação, quando mercadorias fo-rem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios;”
Dispositivo congênere é encontrado no Regulamento do ICMS: “Art. 1º - O imposto tem como fato gerador: [...] IV – o fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos municípios”.
O Excelso Pretório já se manifestou sobre o tema: “Per-gunta-se, entretanto, como entender os dois dispositivos: o art. 155, I, ‘b’ [atu-almente art. 155, II], que prevê a incidência do imposto relativo à circulação de mercadorias sobre prestação de serviços de transporte interestadual, intermu-nicipal, e de comunicação e a disposição do mesmo art. 155, § 2º, IX, ‘b’, a es-tipular que o ICMS incide sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços não compreendidos na competência tributária dos municípios. Não encontro, ‘data venia’, a dificuldade apontada pelo ilustre Ministro Carlos Velloso, segundo qual haveria inviabilidade de aplicar-se a letra ‘b’ do inciso IX do § 2º do art. 155, em virtude do que está no art. 155, I, letra ‘b’, da mesma Lei Magna. O art. 155, I, ‘b’, dispõe sobre serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação. Ora, não é desses serviços, em hipótese alguma, que cuida a letra ‘b’, do inciso IX do § 2º do art. 155, da Constituição, pois não cabe admitir que, nessa previsão de incidência sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidas com serviços, a Constituição estivesse se referindo aos serviços de transportes interestaduais, intermunicipais e de comunicação. Tal disposição (art. 155, § 2º, IX, ‘b’) é autô-noma em relação à do art. 155, I, ‘b’, da Constituição; regula, precisamente, as hipóteses em que mercadorias e serviços compõem uma operação mista, as-sim como sucede nos restaurantes e bares, no instante em que a mercadoria é fornecida aos fregueses e por estes consumida no próprio estabelecimento, que lhes presta, desse modo, também, serviços. O fornecimento da mercadoria não se dá sem a simultânea prestação do serviço. Ora, entendo que é exata-mente para essa hipótese que a alínea ‘b’ do inciso IX, do § 2º, do art. 155, da Lei Maior, está a dispor. A Constituição anterior não tinha regra alguma, no particular, e longa era a discussão sobre a incidência de ICM nesses casos. Compreendo esse dispositivo como uma forma de solver, precisamente, tais hipóteses de operação mista que, no regime anterior, se apresentavam como objeto de larga polêmica” (RE n. 179853/PR, Min. Néri da Silveira).
Ora, por estar a prestação de serviço relacionada ao forne-cimento da mercadoria – energia elétrica – e não ser tributável por ISS, o seu custo deve integrar a base de cálculo do ICMS.
Por fim, convém destacar que, não obstante os iterativos pronunciamentos do colendo Superior Tribunal de Justiça sobre o matéria (REsp n. 222810/MG e REsp n. 343952/MG), há na espécie dois fundamentos não, por certo, suscitados e nem apreciados por aquela corte: a distinção entre energia e potência e entre as tarifas monômias e binômias, nos termos da Res. n. 456/00 da ANEEL, que não é referida naqueles veredictos. Este fato, con-cessa venia, possibilita, sem ofensa ao acatamento e ao princípio da seguran-ça jurídica, a adoção de entendimento diverso até mesmo, quando for a hipóte-se, de uma súmula persuasiva.
Em decorrência do provimento do apelo do Estado de Santa Catarina, o ônus da sucumbência é suportado pelo contribuinte, estabe-lecendo-se a verba advocatícia, ex vi do art. 20, § 4º, do Cânone Processual, e com base nas alíneas do parágrafo anterior, em R$ 1.000,00.
Ante o exposto, dá-se provimento ao reclamo para julgar improcedente o pedido inicial, sendo devida a verba advocatícia pelo contribu-inte em R$ 1.000,00.
Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Exmos. Srs. Des. Orli Rodrigues e Cid Goulart.

Florianópolis, 31 de julho de 2007

Francisco Oliveira Filho

PRESIDENTE E RELATOR