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TJSC Jurisprudência Catarinense
Processo: 2008.070877-7 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Salete Silva Sommariva
Origem: Criciúma
Orgão Julgador: Segunda Câmara Criminal
Julgado em: Tue Nov 10 00:00:00 GMT-03:00 2009
Juiz Prolator: Manoel Donisete de Souza
Classe: Apelação Criminal

 

Apelação Criminal n. 2008.070877-7, de Criciúma

Relatora: Desa. Salete Silva Sommariva

APELAÇÃO CRIMINAL - TRIBUNAL DO JÚRI - HOMICÍDIO PRIVILEGIADO-QUALIFICADO (CP, ART. 121, §§ 1º E 2.º, IV) - PRELIMINARES - APARTES DURANTE A EXPOSIÇÃO DA DEFESA - ATUAÇÃO IMPARCIAL DA REPRESENTANTE DO PARQUET - MATÉRIA PRECLUSA (CPP, ART. 571, VIII) - PREJUÍZO INEXISTENTE - REQUISIÇÃO MINISTERIAL PARA AFERIÇÃO DE CRIME DE FRAUDE PROCESSUAL (CPP, ART. 40) - PROVA AUDIOVISUAL JUNTADA ILEGALMENTE PELA DEFESA - CONDUTA ATÍPICA - PRELIMINARES AFASTADAS.

I - Conforme disposição expressa no art. 571, VIII, do Código de Processo Penal, as nulidades aferidas em sessão plenária do Tribunal do Júri devem ser argüidas logo depois de ocorrerem, sob pena de preclusão.

II - Consoante o brocardo francês pas de nullité sans grief, a nulidade processual será reconhecida se dela resultar prejuízo a um dos litigantes. Tal linha de pensamento é adotada por nossa legislação processual penal, pois o art. 563 da lex instrumentalis estabelece que: "nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa".

Desse modo, não acarreta nulidade processual por ausência de prejuízo o fato de a representante do Ministério Público proferir diversos apartes durante a exposição oral da defesa, a ponto de o juiz presidente presidente da sessão advertir-lhe com a possibilidade de acréscimo de tempo para a finalização dos argumentos defensivos, se o advogado do réu sequer chega a utilizar do espaço total inicial que lhe é disposto, abdicando do tempo remanescente.

III - Institui o art. 40 do Código de Processo Penal que "quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia".

Hipótese em que não configura o delito de fraude processual (CP, art. 347) a apresentação, pela defesa, de uma gravação audiovisual não autorizada pelo juízo, cuja única consequência é sua desvinculação às decisões eventualmente nela amparadas.

PRETENSA DESCLASSIFICAÇÃO DO HOMICÍDIO PARA SUA FORMA SIMPLES (CPP, ART. 121, CAPUT) - DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS - INOCORRÊNCIA - EXISTÊNCIA DE VERSÃO QUE SUSTENTA A MAJORANTE DA SURPRESA (CP, ART. 121, §2º, IV) - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS.

Muito embora o Código de Processo Penal estabeleça a possibilidade de interposição de recurso de apelação sob fundamento de decisão manifestamente contrária à prova dos autos (CP, art. 593, III, "d"), sem que se incorra em violação ao princípio constitucional da soberania dos veredictos (CF/88, art. 5º, XXXVIII), tal argumento somente se justifica quando a decisão do conselho de sentença se encontrar em total dissonância com o contexto probatório, o que não ocorre na hipótese de constar nos autos mais de uma versão a ser conferida aos elementos de prova, vindo os jurados a optar por uma delas que, ao seu ver, representa maior plausibilidade.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2008.070877-7, da comarca de Criciúma (1ª Vara Criminal), em que é apelante Sinésio Araújo, e apelada A Justiça, Por Seu Promotor:

ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, negar provimento ao recurso para manter incólume a decisão do Tribunal do Júri que declarou o réu Sinésio Araújo culpado das imputações do crime previsto no art. 121, §§ 1º e 2º, IV, do Código Penal. Custas legais.

RELATÓRIO

O Ministério Público de Santa Catarina, por meio de seu promotor de justiça oficiante na 1ª Vara Criminal da comarca de Criciúma, ofereceu denúncia em face de Sinésio Araújo, dando-o como incurso no art. 121, §2º, I e IV, do Código Penal em virtude dos fatos assim narrados na exordial acusatória:

Infere-se do procedimento policial que instrui a presente denúncia, que em data de 04 de março do ano em curso (2006), por volta das 23 horas, o denunciado, SINÉSIO ARAÚJO, animus necandi, desferiu contra a vítima Diogo Cardodo Feuser disparo de arma de fogo com um revólver calibre 32 (não apreendido), causando-lhe as lesões corporais descritas no auto de exame cadavérico de f. 7 do Inquérito Policial, lesões essas que foram a causa da morte da vítima ocorrida no Hospital São José, nesta Cidade, horas mais tarde, em virtude de 'parada cardio-respiratória por hemorragia interna aguda'.

Segundo consta, por ocasião de tais fatos, a vítima se encontrava nas proximidades da Pizzaria Carminha, localizada na Rua 572, Bairro São Francisco, nesta Cidade, conversando com amigos, tendo o denunciado se utilizando de recurso que dificultou a defesa da vítima, que ao ser abordada não dispunha de condições de saber, inclusive, que poderia ser mortalmente ferida.

O motivo do crime se deu, conforme consta nos autos, por sentimento de vingança e consubstanciar a torpeza, sentimento este nutrido pelo denunciado contra a pessoa de Rogério Rabello da Silva, o 'Gerinho', amigo da vítima, com quem, momentos antes, havia se desentendido.

Assim, imbuído do propósito de vingar-se de 'Gerinho', o denunciado SINÉSIO ARAÚJO armou-se com uma arma de fogo (instrumento não apreendido) e seguiu ao encalço de seu desafeto, tendo descarregado todo o seu propósito homicida contra a vítima Diogo, amigo de Rogério, com quem se encontrava antes de avisar o primeiro.

Na seqüência, após ferir mortalmente Diogo, o denunciado empreendeu exitosa fuga, desvencilhando-se da arma de fogo que utilizara, certamente no afã de obstaculizar os trabalhos investigatórios da polícia. (fls. 02/03)

Recebida a denúncia em 25-4-2006 (fl. 58), o réu foi citado (fl. 65) e interrogado (fls. 67/69), após o que, por meio de defensor constituído, apresentou defesa prévia (fls. 74/76).

Durante a instrução da fase preliminar foram ouvidas onze testemunhas (fls. 84/90, 101, 109 e 113/115 e 132).

Na sequência, respeitada a ordem legal, as partes apresentaram suas alegações finais (fls. 135/144 e 154/155).

Conclusos os autos, o magistrado Claudio Eduardo Régis de Figueiredo e Silva acolheu a denúncia para pronunciar Sinésio Araújo, a fim de fosse submetido ao julgamento pelo Tribunal de Júri em virtude da suposta prática do crime previsto no art. 121, §2º, I e IV, do Código Penal (fls. 158/164).

Em seguida, o Ministério Público formulou o libelo-crime acusatório (fls. 169/170),sendo apresentada a contrariedade ao libelo (fl. 174/176).

Na sessão do Tribunal do Júri, o Ministério Público requereu a exclusão da qualificadora do motivo torpe (CP, art. 121, §2º, I), razão pela qual o tema não fez parte das quesitações e, ainda, o Conselho de Sentença reconheceu a figura privilegiada do §1º do mesmo artigo, após o que o magistrado presidente Manoel Donisete de Souza, condenou o réu pela prática do crime previsto no art 121, §1º e 2º, IV, do CP, fixando-lhe a pena em 8 (oito) anos de reclusão, inicialmente em regime semiaberto.

Inconformado com a prestação jurisdicional entregue, a defesa interpôs recurso de apelação, apontando, primeiramente, irregularidades na sessão plenária, porquanto a representante do Ministério Público teria se dirigido aos jurados como sendo "sua clientela" e, ainda, completou que "eu conheço minha clientela e ela me conhece" e que "minha clientela não me deixará na mão". Além disso, pugnou pela exclusão da qualificadora da surpresa, sob o argumento de que as provas não deixam clara a sua ocorrência (fls. 274/278).

Após as contrarrazões (fls. 301/308), ascenderam os autos a esta egrégia corte.

A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Humberto Francisco Scharf Vieira (fls. 314/320), manifestou-se pelo desprovimento do reclamo.

VOTO

Trata-se de apelação criminal interposta por Sinésio Araújo contra sentença que condenou-o à pena de 8 (oito) anos de reclusão, inicialmente em regime semiaberto, pela prática do crime previsto no art. 121, §1º c/c §2º, IV, do Código Penal.

1 Preliminarmente

1.1 Das irregularidades na sessão plenária

Inicialmente, sustenta o apelante a existência de irregularidades ocorridas durante a sessão do Tribunal de Júri, sob o argumento de que a atuação da representante do Ministério Público, Dra. Anelize Nascimento Martins Machado, feriu o princípio da igualdade entre as partes, porquanto demonstrou possuir relação de amizade com dois dos sete jurados.

Relatou o apelante as palavras da promotora de justiça ao Conselho de Sentença:

Eu conheço minha clientela, e ela me conhece, nós temos trabalhado juntos nestes últimos seis anos em que estive a frente da 1ª Promotoria desta Comarca, e minha clientela, não me deixará na mão e mesmo estando afastada da 1ª Vara, vim atuar junto a minha colega, para pedir que seja reconhecida a agravante, porque afinal foi a denúncia feita por mim e, eu entendo que seja assim [...]. (fl. 277)

Além disso, destacou o cumprimento efusivo ocorrido entre a representante do Parquet e os dois jurados citados.

Em contrarrazões, a promotora de justiça Mirela Dutra Alberton, que também participou do julgamento, repeliu as assertivas do acusado, admitindo que a sessão fora tumultuada, ocorrendo diversas interrupções, e por fim, rechaçou a existência de qualquer vínculo ente representantes do Ministério Público e os componentes do órgão julgador, ressaltando que os cumprimentos ocorridos após o veredicto final não ultrapassou a esfera da cordialidade cotidiana típica da situação.

Contudo, conforme se percebe da ata de fls. 234/237, firmada também pelo defensor do apelante, não houve qualquer insurgência quanto aos procedimentos ali adotados, de modo que, nos termos do art. 571, VIII do diploma processual penal, restou preclusa a análise dos supracitados vícios.

Nesse sentido, esta câmara já decidiu:

TRIBUNAL DO JÚRI. NULIDADE. PRELIMINAR. ARGÜIÇÃO EXTEMPORÂNEA, EX VI DO ART. 571, INCISO VIII, DO CPP. AUSÊNCIA DE CONSIGNAÇÃO NA ATA DO JULGAMENTO. PRECLUSÃO. PREFACIAL REPELIDA.

As nulidades do julgamento em plenário devem ser argüidas em audiência ou em sessão do tribunal logo após a respectiva ocorrência, sob pena de preclusão, à luz do estatuído no art. 571, inciso VIII, do Código de Processo Penal. (Ap. Crim. n. 2005.031728-5, de Maravilha, rel. Des. Sérgio Paladino, j. em 8-11-2005).

Em face disso, resta precluso o exame das assertivas.

Ad argumentandum tantum, necessário analisar-se a petição protocolizada pela defesa após as razões recursais (fls. 299/300), na qual relata que durante a exposição da defesa, a representante do Parquet manifestou-se diversas vezes, a ponto de conturbar a retórica do advogado do apelante, fato este que levou o juiz presidente a advertir a promotora de justiça, no sentido de que as intromissões seriam constadas em ata e o tempo da defesa poderia ser acrescido, o que na verdade, não chegou a ocorrer.

Para corroborar sua fundamentação, colacionou ao petitório um CD de áudio/vídeo contendo a gravação de parte da sessão.

Conquanto dos autos se permita inferir o clima tenso sob o qual desenvolveu-se a sessão do Tribunal do Júri e, malgrado as argumentações do apelante acerca dos apartes proferidos pelas promotoras de justiça, tais fatos não ensejaram prejuízo algum à defesa, uma vez que, conforme se extrai da ata da sessão, o respectivo patrono sequer utilizou o tempo integral que lhe fora concedido para alegações orais iniciais - duas horas, nos termos antiga redação do art. 474, caput, do CPP - porquanto discursou por tão-somente 1h37min, abdicando dos minutos remanescentes.

Assim, reputar-se-ia irrelevante o acréscimo de tempo para a defesa e, consoante o brocardo francês pas de nullité sans grief, a nulidade processual será reconhecida se dela resultar prejuízo a um dos litigantes. Tal linha de pensamento é adotada por nossa legislação processual penal, pois, o art. 563 da lex instrumentalis, estabelece que: "nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa".

Em igual norte, ensina Eugênio Pacelli de Oliveira:

[...] toda a matéria relativa às nulidades há de ser interpretada à luz de um princípio que resume e reúne a totalidade das tarefas atribuídas aos atos e formas processuais e/ou procedimentais. É o chamado princípio da instrumentalidade das formas, tradução do antigo pas de nullité sans grief, segundo o qual, para o reconhecimento e a declaração de nulidade de ato processual, haverá de ser aferida a sua capacidade para a produção de prejuízos aos interesses das partes e/ou ao regular exercício da jurisdição (art. 563, CPP). (Curso de processo penal. 7.ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 661).

Desse modo, em não se verificando prejuízos à parte, desnecessário proclamar-se qualquer nulidade ocorrida na sessão de julgamento.

1.2 Do requerimento do Ministério Público à fl. 300v

Por fim, para fins de se evitar eventuais lacunas no provimento jurisdicional, necessário discorrer-se acerca do pleito ministerial encampado ao verso da petição formulada pela defesa à fl. 299/300, no qual a representante do Parquet requereu a extração de cópia do pleito, bem o desentranhamento do CD colacionado, para que fossem enviados à autoridade polcial competente para investigar suposta ocorrência do crime de fraude processual, ao passo que o juiz negou o pedido, deixando a análise a cargo desta relatora.

De fato, institui o art. 40 do Código de Processo Penal que "quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia".

No entanto, no caso em comento, não se verifica a necessidade da medida, porquanto não se vislumbra, a princípio, a conduta delitiva.

A propósito, transcreve-se o disposto no art. 347 do Código Penal:

Art. 347. Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.

E colhe-se dos ensinamentos de Guilherme Souza Nucci:

Inovar significa introduzir uma novidade. O objeto da conduta é coisa, lugar ou pessoa envolvida em processo judicial. Exige-se que a inovação tenha capacidade de enganar, constituindo efetivamente uma modificação no estado natural das coisas. Não estão incluídas as alterações naturais das coisas, dos lugares e das pessoas (ex.: deixar crescer a barba ou o bigode). (Código Penal comentado, 8. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 1152)

Dessa forma, desde logo, percebe-se que a conduta praticada pela defesa nos sentido de protocolizar petição juntamente com uma gravação não autorizada pelo juízo, não se enquadra em nenhuma das hipóteses descritas no tipo penal destacado.

Isso porque, não configura o delito de fraude processual (CP, art. 347) a apresentação, pela defesa, de uma gravação audiovisual não autorizada pelo juízo, cuja única consequência é sua desvinculação às decisões eventualmente nela amparadas.

Assim sendo, uma vez que não há crime a ser investigado, nega-se o pedido de extração de cópias da petição e de desentranhamento do CD anexo, ressaltando-se, que referidos elementos não influenciaram no convencimento adotado para solução do feito.

Dessa forma, afastam-se as preliminares e passa-se ao exame de mérito.

2 Do mérito

Da exclusão da qualificadora da surpresa

No mérito, pretende a defesa a exclusão da qualificadora da surpresa, prevista no inciso IV do §2º do art. 121 do Código Penal, sob o fundamento de que a briga anterior ocorrida entre o apelante e a vítima derrui a possibilidade de reconhecimento dessa majorante, uma vez que, da situação fática revelada nos autos, pode-se assentar que a vítima detinha condições de prever a agressão.

No ponto, cabe colacionar a lição de Cezar Roberto Bittecourt acerca da qualificadora em apreço, in verbis:

A surpresa constitui um ataque inesperado, imprevisto e imprevisível; além do procedimento inesperado, é necessário que a vítima não tenha razão para esperar a agressão ou suspeitar dela. Não basta que a agressão seja inesperada; é necessário que o agressor atue com dissumulação, procurando, com sua ação repentina, dificultar ou impossibilitar a defesa da vítima.

Para se configurar a surpresa, isto é, recurso que torna difícil ou impossível a defesa do ofendido, é necessário que, além do procedimento inesperado, não haja razão para a espera ou, pelo menos, suspeita da agressão, pois é a dificuldade ou mesmo impossibilidade de a vítima defender-se que fundamenta a qualificadora. (Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa, 8 ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 63).

E, diante do contexto formado pelos elementos probatórios colhidos na instrução, vislumbra-se a existência de depoimentos que demonstram que a morte da vítima dera-se mediante um ataque repentino, inesperado, a ponto de caracterizar-se a surpresa.

A propósito, colhe-se das palavras de Cristiano Farias de Oliveira:

[...] Diogo chegou com Gerinho e foi conversar com o depoente na Vídeo Locadora, depois disso Diogo desceu em direção à lanchonete quando Sinésio chamou ele de trás de uma árvorezinha; que não viu se os dois discutiram, apenas ouviu um barulho de tiro [...]. (fl. 85)

No mesmo sentido está a narrativa de Everson Rabello da Silva:

[...] Diogo não bateu no réu só separou a briga; que depois foram ao posto e depois foram à pizzaria; que ao chegarem na pizzaria foram beber cerveja e comer uma pizza; que estavam ali fazia 15 minutos quando o acusado chegou; que não viu ele chegar de bicicleta; que o acusado chamou diogo a uns 10 ou 15 metros, do lado de uma árvore, que quando Diogo chegou perto dele ele só atirou sem dizer nada [...]. (fl. 87)

Dessa forma, malgrado encontrar-se nos autos, também, testemunhos evidenciando que a vítima e o réu haviam participado de uma desavença momentos antes do crime - fato ressaltado com o reconhecimento do homicídio privilegiado -, em havendo provas que sustentem a versão da dificuldade de a vítima defender-se em razão da surpresa com que fora atacada, inviável a desclassificação do delito por este órgão revisor.

Isso porque, é cediço que ao Tribunal do Júri é assegurada a soberania de seus veredictos, conforme preceito insculpido no art. 5º, XXXVIII, da CF/88, de modo que a repetição do julgamento somente se opera na hipótese prevista no art. 593, III, "d".

Júlio Fabbrini Mirabete disserta acerca do assunto:

O art. 593, III, "d", prevê a apelação para a decisão do Tribunal do Júri quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos. Trata-se de hipótese em que se fere justamente o mérito da causa, em que o error in judicando é reconhecido somente quando a decisão é arbitrária, pois se dissocia integralmente da prova dos autos determinando-se novo julgamento. Não se viola, assim, a regra constitucional da soberania dos veredictos. Não é qualquer dissonância entre o veredicto e os elementos de convicção colhidos na instrução que autorizam a cassação do julgamento. Unicamente, a decisão dos jurados que nenhum apoio encontra na prova dos autos é que pode ser invalidada. É lícito ao Júri, portanto, optar por uma das versões verossímeis dos autos, ainda que não seja eventualmente essa a melhor decisão (Código de processo penal interpretado. 11. ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 1.487 e 1488).

Nesta alheta, para se acatar a tese defensiva, o veredicto deveria estar totalmente divorciado do conjunto probatório, a ponto de inviabilizar a interpretação no sentido do que fora deliberado pelos juízes de fato. Tal não ocorre quando do contexto dos autos se possibilite a aferição de mais de uma versão para os fatos, acolhendo os jurados a que lhes paracer mais verossímel.

Acerca do tema, colhe-se da abalizada doutrina de Fernando da Costa Tourinho Filho:

É imperioso, contudo, esteja a decisão de todo dissociada das provas dos autos. A lei diz: manifestamente contra a prova dos autos. É preciso que a decisão dos jurados derive do acervo probatório. Assim se a prova dos autos demonstram, unanimemente, que o réu não agiu em legítima defesa, sua absolvição com base nessa excludente de ilicitude é declaradamente contra a prova dos autos. E vice-versa: se as provas demonstram, à unanimidade, que o réu agiu em legítima defesa, eventual condenação se dissocia das provas colhidas. Exige-se, contudo, que a decisão dos jurados não encontre arrimo em alguma prova. Afinal de contas, os jurados têm liberdade de julgar, e essa liberdade lhes confere o direito de optar por uma das versões. Se a sua decisão é estribada em alguma prova, não se pode dizer ser ela manifestamente contrária ao apurado no corpo do processo. (Código de Processo Penal comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 2, p. 338)

Prosseguindo na exegese ao artigo em comento, traz-se à baila a lição de Heráclito Antônio Mossim:

Como se extrata da vontade do legislador, não é qualquer desencontro entre a decisão dos juízes de fato e a prova consubstanciada nos autos que autoriza o acolhimento e provimento do apelo. Necessário se torna que a convicção dos jurados esteja em conflitância ou radical antagonismo com as questões fáticas colacionadas aos autos por meio do procedimento probatório. A decisão deverá estar integralmente divorciada das provas carreadas aos autos. As provas não autorizam o veredictum dos juízes de fato. Não há uma conciliação entre a verdade real que restou espelhada nos autos e a convicção exteriorizada pelos jurados. Enfim, decisão manifestamente contrária à prova dos autos é aquela que não tem apoio em prova alguma, aquela proferida ao arrepio de tudo quanto mostram os autos. (Recursos em matéria criminal. 4.ed. Barueri: Manole, 2006, p. 90/91)

Na situação dos autos, vislumbra-se que os jurados acolheram, por unanimidade, a tese de homicídio privilegiado-qualificado, e assim decidindo, vieram ao encontro da prova produzida, pelo que não se pode cogitar de decisão manifestamente contrária à prova do caderno processual.

Com efeito, acolheram os jurados a versão que entenderam mais consentânea com as provas constantes dos autos: de que o delito foi cometido dolosamente, mediante surpresa e com o apelante sob domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima.

Embora a tese da defesa tenha buscado, em suas razões recursais, reforçar a existência de uma única versão para o acontecido e, com isso, desconstituir a proposição adotada pelo Tribunal do Júri, a lei penal é expressa quanto ao tema, no sentido de que a cassação do veredicto é permitida quando estiverem totalmente dissociados os fatos do processo com a decisão final popular, o que não é a hipótese dos autos.

A respeito, desta corte de justiça, colaciona-se:

APELAÇÃO CRIMINAL. JÚRI. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO POR MOTIVO TORPE E USO DE RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. ALEGAÇÃO DE MANIFESTA CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS. INOCORRÊNCIA. CONJUNTO PROBATÓRIO APTO A SUSTENTAR A DECISÃO DOS JURADOS E AFASTAR A TESE DEFENSIVA. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS. DECISÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA MANTIDA. (Ap. Crim. n. 2006.012183-8, de Criciúma, rel. Des. Túlio Pinheiro, j. em 19-3-2008).

E mais:

PENAL E PROCESSUAL - JÚRI - HOMICÍDIO QUALIFICADO - DECISÃO CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS - INOCORRÊNCIA - CONDENAÇÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO.

O Júri é soberano.

"Não cabe à Justiça Togada, nos estritos limites da apelação contra veredicto do Tribunal do Júri, desqualificar prova idônea, produzida sob o crivo do contraditório" (HC 85904/SP - rel. Min. Joaquim Barbosa - j. 13.2.2007 - DJ 29.6.2007). (Ap. Crim. n. 2007.044215-1, de São José, rel. Des. Amaral e Silva, j. em 12-3-2008).

Em idêntico sentido:

RECURSO DEFENSIVO INTERPOSTO PELO OUTRO RÉU. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA A PROVA DOS AUTOS. VEREDICTO DOS JURADOS ARRIMADO NA VERSÃO QUE LHES PARECEU MAIS CONVINCENTE. NULIDADE INEXISTENTE. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO DOS DELITOS QUE NÃO TEM GUARIDA EM SEDE DE APELAÇÃO INTERPOSTA CONTRA DECISÃO EMANADA DO CONSELHO DE SENTENÇA. (Ap. Crim. n. 2007.029478-7, de Itajaí, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. em 18-2-2008).

Conclui-se, assim, que restou demonstrado, durante a instrução criminal, a plausibilidade da versão de homicídio doloso privilegiado-qualificado, e se o Conselho de Sentença assim decidiu, não cabe a este Tribunal desconstituir a deliberação emanada pelo tribunal popular, mesmo porque não se deliberou de maneira equivocada, nem fora ao encontro às provas existentes no feito, devendo ser mantido o veredicto.

Isso posto, negar provimento ao recurso para manter incólume a decisão do Tribunal do Júri que declarou o réu Sinésio Araújo culpado ds imputações do crime previsto no art. 121, §§ 1º e 2º, IV, do Código Penal.

DECISÃO

Nos termos do voto da relatora, decide a Câmara, à unanimidade, negar provimento ao recurso para manter incólume a decisão do Tribunal do Júri que declarou o réu Sinésio Araújo culpado ds imputações do crime previsto no art. 121, §§ 1º e 2º, IV, do Código Penal.

Participaram do julgamento, em 10 de novembro de 2009, os Exmos. Srs. Desembargadores Sérgio Paladino (Presidente) e Tulio Pinheiro.

Florianópolis, 16 de novembro de 2009.

Salete Silva Sommariva

RELATORA


Desa. Salete Silva Sommariva