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TJSC Jurisprudência Catarinense
Processo: 0900090-77.2018.8.24.0011 (Acórdão do Tribunal de Justiça)
Relator: Sérgio Rizelo
Origem: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
Orgão Julgador: Segunda Câmara Criminal
Julgado em: Tue Feb 22 00:00:00 GMT-03:00 2022
Classe: Apelação Criminal

 









Apelação Criminal Nº 0900090-77.2018.8.24.0011/SC



RELATOR: Desembargador SÉRGIO RIZELO


APELANTE: VILMAR LUIS SDRIGOTTI (ACUSADO) ADVOGADO: THIAGO YUKIO GUENKA CAMPOS (DPE) APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR)


RELATÓRIO


Na Comarca de Brusque, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra Vilmar Luis Sdrigotti e Luciana Debatin Sdrigotti, imputando-lhes a prática do crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, por cinco vezes, na forma do art. 71 do Código Penal, nos seguintes termos:
Infere-se dos documentos que instruem o procedimento supramencionado, que os denunciados, na época dos fatos, eram sócios e administradores da empresa Luckymar Confecções Ltda. ME (fl. 45), CNPJ n. 00.077.787/0001-90 e Inscrição Estadual n. 25.286.947-8, estabelecida na Rua Almirante Barroso n. 67, bairro Santa Rita, Brusque/SC, que tem por objeto social a exploração do ramo de "indústria e comércio de confecções de malhas, jeans e tecidos" (Cláusula 3ª da 4ª Alteração Contratual - fl. 44).
Dessa forma, os denunciados eram responsáveis pela direção e gerência da empresa, tendo ciência e controle das transações e negócios realizados, bem como responsabilidade legal e fática pela regularidade fiscal.
Além da administração geral da empresa, determinavam os atos de escrituração fiscal e eram responsáveis pela apuração e recolhimento do ICMS - Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviço de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação devido.
Quaisquer vantagens ou benefícios obtidos pela empresa, mesmo os de origem ilícita, eram aproveitados diretamente pelos denunciados, sujeitando-os à regra prevista no art. 11, caput, da Lei n. 8.137/90.
Em procedimento rotineiro, a Fiscalização de Tributos Estaduais constatou que, apesar de terem apresentado as Declarações de Informações do ICMS e Movimento Econômico - DIMEs à Secretaria da Fazenda, os denunciados, nos períodos de maio e julho de 2016 e de novembro de 2016 a janeiro de 2017, não recolheram aos cofres públicos, no prazo determinado pelo art. 60 do RICMS/01, os valores apurados e declarados.
Em razão disso, o Fisco Estadual, em 11/04/2017 e 18/04/2017, emitiu, respectivamente, os Termos de Inscrição em Dívida Ativa n. 17001060397 (fls. 14-15) e n. 17001117682 (fls. 26-27), que apresentam o seguinte código da infração: "1018 - Conta Corrente - Falta de Recolhimento de ICMS declarado pelo próprio sujeito passivo - Inscrição Direta em Dívida Ativa".
As Declarações do ICMS e do Movimento Econômico - DIMEs que originaram os referidos Termos de Inscrição em Dívida Ativa estão juntadas, respectivamente, às fls. 17-24 e 29-33 do procedimento anexo.
Em relação a apuração do imposto devido, cabe ressaltar que, nos termos do art. 53 do Regulamento do ICMS/2001, "o imposto a recolher será apurado mensalmente, pelo confronto entre os débitos e os créditos escriturados durante o mês, em cada estabelecimento do sujeito passivo".
O art. 60 do RICMS/2001 determina que, ressalvadas as hipóteses que enumera, "o imposto será recolhido até o 10º (décimo) dia após o encerramento do período de apuração".
O art. 168 do Anexo 5 do RICMS/2001 dispõe que os estabelecimentos encaminharão em arquivo eletrônico, enviado pela internet, a Declaração de Informações do ICMS e Movimento Econômico - DIME, que se constituirá no registro dos lançamentos constantes do livro Registro de Apuração do ICMS, dos demais lançamentos fiscais relativos ao balanço econômico e dos créditos acumulados, referentes às operações e prestações realizadas em cada mês.
Consoante se pode constatar do objeto dos Termos de Inscrição em Dívida Ativa que, apesar de terem sido devidamente escrituradas as operações tributáveis da empresa, os administradores acima relacionados, com união e conjugação de esforços, ao atuarem no comando da empresa, não realizaram e nem determinaram o pagamento devido dos tributos nas datas de vencimento, ou seja, não adimpliram a obrigação tributária lesando, consequentemente, os cofres públicos.
Como é sabido, o ICMS é pago pelo consumidor, sendo o comerciante simples repassador do imposto gerado ao Estado, razão pela qual é classificado como imposto indireto e seu recolhimento é obrigação acessória do contribuinte.
Importa, ainda, salientar que o ICMS - tido como tributo incidente sobre o consumo - tem seu ônus cobrado pelo consumidor final, verdadeiro destinatário do tributo, sendo delimitado o vendedor como contribuinte de direito por razões de política tributária.
Ressalta-se que, quando o fornecedor promove a saída de mercadoria ou serviço tributável pelo ICMS, cobrado do adquirente no preço final - este tributo que deverá ser repassado ao fisco - deve recolher referido tributo ao erário no prazo legal, sob pena de violação do disposto no art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.137/1990.
Portanto, considerando que os denunciados detinham os valores, mas optaram pelo não repasse ao Estado-SC, resta evidenciado que agiram com manifesto dolo nesta omissão no pagamento do tributo.
Dos valores tributários devidos
I) Os valores devidos referentes ao Termo de Inscrição em Dívida Ativa n. 17001060397, computando-se a multa e os juros até a data em que foi emitido, totalizam R$ 4.439,27 (fl. 14). O referido valor foi atualizado em 01/02/2018 e corresponde ao total de R$ 4.696,28 (quatro mil seiscentos e noventa e seis reais e vinte e oito centavos), conforme consulta extrato S@t de fl. 62.
II) O montante devido referente ao Termo de Inscrição em Dívida Ativa n. 17001117682, computando-se a multa e os juros até a data em que foi emitido, totalizam R$1.974,01 (fl. 26).
O mencionado valor foi atualizado em 01/02/2018 e corresponde ao total de R$ 2.094,00 (dois mil e noventa e quatro reais), conforme consulta extrato S@t de fl. 61.
Valor total atualizado (ref. aos Termos itens I e II): R$6.790,28 (seis mil setecentos e noventa reais e vinte e oito centavos).
Da não quitação dos débitos tributários
De acordo com o registro no Sistema de Administração Tributária - S@t, da Secretaria da Fazenda do Estado de Santa Catarina, os valores correspondentes aos crimes ora narrados não foram pagos até o momento (extratos de fls. 61-62 do procedimento anexo) (Evento 3).
Concluída a instrução, o Doutor Juiz de Direito Edemar Leopoldo Schlösser julgou parcialmente procedente a exordial acusatória e condenou Vilmar Luis Sdrigotti à pena de 8 meses de detenção, a ser cumprida em regime inicialmente aberto, e 13 dias-multa, substituída a privativa de liberdade por prestação pecuniária de valor equivalente ao do salário mínimo, pelo cometimento do delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, por cinco vezes, na forma do art. 71 do Código Penal, absolvendo Luciana Debatin Sdrigotti, nos termos do art. 386, V, do Código de Processo Penal (Evento 46).
Insatisfeito, Vilmar Luis Sdrigotti deflagrou recurso de apelação (Evento 52).
Em suas razões, aponta a "atipicidade da conduta", primeiramente por "inaplicabilidade da norma penal que a incrimina", já que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos "veda, sem ressalvas, qualquer espécie de prisão motivada puramente por dívida", e por "inexistência de regime de substituição tributária", de modo que "a conduta em tese perpetrada [...] não corresponde ao tipo penal que lhe é imputado".
Alega que "em momento algum se comprovou nos autos que [...] de modo contumaz e dolosamente tenha se apropriado dos valores pertencentes ao fisco", e que, "na verdade, a instabilidade e a crise econômica afetaram as atividades [...] ao ponto de deverem para a Fazenda Pública e fornecedores".
Pondera estar configurada a excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, pois, "não havendo dinheiro para custear todas as obrigações empresariais acabou [...] de recolher o imposto para direcioná-lo a áreas que a priori se mostravam uma alternativa para garantir a continuidade empresarial, mas tudo sem êxito, pois, mesmo assim, a empresa veio a fechar", ao passo que "não se poderia exigir que [...] optasse por recolher os tributos no lugar de tentar a manutenção e sobrevivência da sua empresa".
Pontua que "o valor do dia-multa é de 14 a 200 Bônus do Tesouro Nacional, conforme art. 8º, parágrafo único, da lei nº 8.137/90, bônus este que está extinto desde 1991, por força da Lei nº 8.177/91" e, assim, "deveria o Juízo a quo ter deixado de aplicá-la, e não aplicá-la com base no salário mínimo, pois assim fazendo flagrantemente ofende o princípio da legalidade".
Sob tais argumentos, requer a proclamação da sua absolvição ou a exclusão da pena de multa (Evento 56).
O Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu contrarrazões pelo conhecimento e desprovimento do reclamo (Evento 59).
A Procuradoria de Justiça Criminal, em parecer lavrado pelo Excelentíssimo Procurador de Justiça Luiz Ricardo Pereira Cavalcanti, manifestou-se pelo conhecimento e desprovimento do apelo (eproc2G, Evento 6).

VOTO


O recurso preenche os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, razão pela qual deve ser conhecido.
1. Não há debate quanto à materialidade e à autoria do fato, mesmo porque o não recolhimento de R$ 5.013,26 (excluídos multa e juros), referentes ao ICMS declarado relativo às operações tributáveis com vencimento em maio e julho de 2016 e novembro de 2016 a janeiro de 2017, está estampado nos Termos de Inscrição de Dívida Ativa 17001060397, de 11.4.17 (Evento 1, doc16) e 17001117682, de 18.4.17 (Evento 1, doc28), nos demonstrativos de débitos (Evento 1, doc17 e 29) e nas Declarações de Informações do ICMS e Movimento Econômico - DIMEs relativas aos períodos (Evento 1, doc19-26 e 31-35).
A autoria dos fatos também é incontroversa, pois os documentos relativos à empresa demonstram que Vilmar Luis Sdrigotti era o administrador da Luckymar Confecções Ltda. ME nos períodos minudenciados na denúncia (Evento 1, doc36-56), bem como assim foi confessado por ele em Juízo (mídia do Evento 36, doc121).
O Recorrente inicialmente sustenta, em síntese, a inconvencionalidade do art. 2º, II, da Lei 8.137/90, que redundaria em prisão por dívida, e que a conduta que lhe é imputada, consistente em ter corretamente declarado o imposto e somente não o recolhido, é atípica porque não se trataria de imposto cobrado ou descontado de terceiro, mas de mera inadimplência fiscal decorrente de não pagamento de tributo próprio.
A conduta narrada na denúncia e comprovada nos autos configura o crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, consistente em "deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos".
Embora não se desconheça a existência de divergências doutrinária e jurisprudencial, entende-se que o ICMS inclui-se na categoria de tributo indireto, na qual o ônus da incidência tributária é transferido pelo contribuinte a terceiro, por meio da sua inclusão no preço da mercadoria.
Andreas Eisele esclarece:
Tal identificação decorre do fato de que, nos tributos indiretos (aqueles nos quais o contribuinte transfere sua repercussão financeira para terceiro), o sujeito passivo da obrigação tributária pode cobrar (ou, eventualmente, receber) de terceiro, a carga econômica correspondente ao valor do tributo, motivo pelo qual não suporta (em tese) seu custo (mediante o mecanismo da repercussão).
Exemplo dessa situação ocorre no ICMS, eis que o contribuinte, ao vender uma mercadoria, destaca na nota fiscal o valor correspondente ao imposto que integrará o preço que será pago pelo adquirente. Nessa relação, o comprador é denominado de (forma alegórica) como "contribuinte de fato", porque pagará ao vendedor o valor representativo do ICMS contabilmente incluído no preço, embora não seja, efetivamente, contribuinte do tributo, pois o único sujeito passivo da obrigação tributária é o vendedor, denominado (também de forma ilustrativa) como "contribuinte direto".
Caso o contribuinte (vendedor) receba o preço da mercadoria (no qual se encontra inserido o valor correspondente ao ICMS) pago pelo adquirente e não efetue o recolhimento do tributo no prazo legalmente estabelecido, estaria, em tese, obtendo uma vantagem econômica ilícita decorrente do recebimento de um valor que deveria repassar aos cofres públicos e que manteve em seu âmbito de disponibilidade (Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002. p. 175).
Pedro Roberto Decomain consoa:
O puro e simples não recolhimento do ICMS pelo contribuinte figura o crime previsto pelo art. 2º, II, da Lei 8.137/90. [...]
Numa primeira abordagem, de cunho eminentemente econômico, deixando de parte discussões doutrinárias sobre os tributos conhecidos como diretos e indiretos, e levando em conta apenas o aspecto econômico a partir do qual são conceituadas essas espécies, ou seja, atentos ao fato de que existem tributos cujo ônus é imediatamente repassado pelo contribuinte a terceiro, em contrapartida a outros em que tal não ocorre, e sabendo-se que o ICMS inclui-se na categoria dos indiretos, ou seja, daqueles cujo montante é cobrado pelo contribuinte ao adquirente dos produtos tributados, encontrando-se a incidência tributária previamente embutida no próprio preço da mercadoria vendida, conclui-se que o não recolhimento do ICMS no prazo previsto pela legislação implica a ocorrência desse crime.
O contribuinte efetivamente repassou ao adquirente da mercadoria tributada o ônus representado pelo ICMS. Cobrou-o, portanto, a terceiro, devendo recolher aos cofres públicos o montante assim apurado.
Se não o faz, comete crime examinado (Crimes contra a ordem tributária. Belo Horizonte: Forum, 2010. p. 360-361).
Quando deixa de recolher aos cofres públicos, em tempo, o montante pago pelo contribuinte de fato, o contribuinte de direito incide na prática vedada no tipo sob exame, e essa é a hipótese dos autos.
Celso Ribeiro Bastos pontua:
A falta de recolhimento do tributo, na forma do tipificada no n. II do art. 2º da Lei 8.137/90, acarreta, portanto, duas implicações: a) civil: conduta omissiva do agente que o coloca em mora - culpa exclusiva; b) penal: apropriação indébita de valor do qual o agente estava na posse precária ou provisória para recolher e transferi-lo ao legítimo titular (Fazenda Pública). Assim sendo, a falta de recolhimento de ICMS oportunamente declarado nas guias adequadas e relativo a dívida por operações próprias do contribuinte, poderá configurar o crime previsto no art. 2º, inciso II da Lei 8.137/90. Só não configurará tal crime, quando a falta de recolhimento ocorrer em virtude de fato relevante e inevitável (caso fortuito ou força maior), independentemente, portanto, da vontade do agente" (apud Leis penais e sua interpretação jurisprudencial, coord. RUI STOCO. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 678).
Ainda se extraem da obra supracitada valiosas lições:
Não há controvérsia de que contribuinte de fato do ICMS é o consumidor final e não o vendedor ou comprador, ou seja "quem arca com o ônus tributário" (cf. Rubens Gomes de Souza, Compêndio de legislação tributária, Resenha Tributária, S. Paulo, 1975, p. 91).
Ora, se este embute no preço final de venda valor que o ressarce do imposto que irá pagar oportunamente, ressuma claro que ocorreu uma retenção de fato e, então, configurado estará o delito previsto no inciso II, do art. 2º da Lei 8.137/90, considerando que houve, induvidosamente, redução do valor devido e, portanto, sonegação fiscal. Por essa razão, é que Yoshiaki Ichihara acrescenta, em adminículo ao nosso entender sobre a questão, que "nesta dimensão das coisas, o contribuinte recolhe o imposto sobre o valor acrescido e portanto, ao deixar de recolher o ICMS tipifica o comportamento como sendo 'deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição sindical, desconta ou cobrado''' (Crimes contra a ordem tributária, Centro de Extensão Universitária e Ed. Revista dos Tribunais, S. Paulo, Pesquisas Tributárias nº 1., 1995, Coordenação de Ives Gandra da Silva Martins, p. 145)" (p. 679).
De fato, havia divergência entre as Turmas do Superior Tribunal de Justiça especializadas no julgamento de temas penais. De um lado, a Sexta Turma entendia que "o delito do artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90 exige que o sujeito passivo desconte ou cobre valores de terceiro e deixe de recolher o tributo aos cofres públicos", ao passo que "o comerciante que vende mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente, não realiza o pagamento do tributo não deixa de repassar ao Fisco valor cobrado ou descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se inadimplente de obrigação tributária própria" (AgRg no REsp 1.632.556, Relª. Minª. Maria Thereza Assis de Moura, j. 7.3.17). Na mesma linha: RHC 77.031, Relª. Minª. Maria Thereza Assis de Moura, j. 6.12.16; REsp 1.543.485, Relª. Minª. Maria Thereza Assis de Moura, j. 5.4.16; e RHC 36.162, Rel. Des. Nefi Cordeiro, j. 26.8.14.
Por outro lado, a Quinta Turma posicionava-se pela tipicidade da conduta debatida: RHC 78.628, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 21.9.17; e RHC 78.613, Rel. Min. Félix Fischer, j. 8.8.17.
A questão foi alvo de apreciação pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça em sede de Habeas Corpus, prevalecendo, por maioria de votos, a tese de que o não repasse de ICMS decorrente de operação comercial, seja por operação própria ou em substituição tributária, enquadra-se na conduta criminosa do art. 2º, II, da Lei 8.137/90.
Colhe-se da ementa do precedente paradigma do Tribunal da Cidadania:
HABEAS CORPUS. NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS POR MESES SEGUIDOS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. DECLARAÇÃO PELO RÉU DO IMPOSTO DEVIDO EM GUIAS PRÓPRIAS. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. TERMOS "DESCONTADO E COBRADO". ABRANGÊNCIA. TRIBUTOS DIRETOS EM QUE HÁ RESPONSABILIDADE POR SUBSTITUIÇÃO E TRIBUTOS INDIRETOS. ORDEM DENEGADA. 1. Para a configuração do delito de apropriação indébita tributária - tal qual se dá com a apropriação indébita em geral - o fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não tem o condão de elidir ou exercer nenhuma influência na prática do delito, visto que este não pressupõe a clandestinidade. 2. O sujeito ativo do crime de apropriação indébita tributária é aquele que ostenta a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, conforme claramente descrito pelo art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, que exige, para sua configuração, seja a conduta dolosa (elemento subjetivo do tipo), consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido. A motivação, no entanto, não possui importância no campo da tipicidade, ou seja, é prescindível a existência de elemento subjetivo especial. 3. A descrição típica do crime de apropriação indébita tributária contém a expressão "descontado ou cobrado", o que, indiscutivelmente, restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, porquanto nem todo sujeito passivo de obrigação tributária que deixa de recolher tributo ou contribuição social responde pelo crime do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, mas somente aqueles que "descontam" ou "cobram" o tributo ou contribuição. 4. A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo "descontado" é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo "cobrado" deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direto. 5. É inviável a absolvição sumária pelo crime de apropriação indébita tributária, sob o fundamento de que o não recolhimento do ICMS em operações próprias é atípico, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude, como ocorreu no caso. Eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar há que ser esclarecida com a instrução criminal. 6. Habeas corpus denegado (HC 399.109/SC, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 22.8.18).
Com relação à questão central do não recolhimento de ICMS, consignou o Excelentíssimo Ministro Relator:
No que tange ao termo "cobrado", possui semelhante significado ao das palavras receber, pedir, embolsar ou coletar, denotando a ideia de acréscimo. Diversamente do que ocorre com o termo "desconto", há um significado de adição resultante daquilo que será agregado com o produto da cobrança. Essa percepção é apreendida nos tributos indiretos, cuja incidência acarretará o aumento do valor do produto a ser suportado pelo contribuinte de fato.
A título de exemplo, menciono o ICMS. O produtor, ao iniciar a cadeia de consumo, recolhe o imposto sobre operações próprias e é reembolsado desse valor com a transferência do encargo para o atacadista que, por sua vez, o transfere para o varejista e que, por fim, repassa para o consumidor final. Veja-se que nessa hipótese, mesmo no caso do ICMS incidente sobre operações próprias, o produtor "cobra" (é reembolsado pela retenção) do próximo adquirente do produto na cadeia de produção, até que o consumidor final, após sucessivas transferências de encargo, suporte o ônus de pagar o valor correspondente ao ICMS, que será acrescido ao valor final do produto. Não há, portanto, "descontos" em nenhuma circunstância.
[...]
É importante sublinhar, em casos tais, que a própria natureza da relação jurídico-tributária estabelecida entre o Estado e o sujeito passivo da obrigação tributária revela um ponto de convergência entre o tributo indireto e sua repercussão econômica, com o significado semântico do termo "cobrado". De fato, os tributos indiretos são aqueles cujo ônus financeiro repercute em terceira pessoa, ou seja, quando o encargo tributário é transferido pelo contribuinte de direito para outra pessoa que o suportará, dentro da cadeia de consumo (repercussão econômica).
Como assinala Sacha Calmon, "quem recolhe o imposto, isto é, o 'contribuinte de jure', necessariamente não é quem suporta financeiramente o encargo financeiro, e sim o 'contribuinte de fato'" (Curso de Direito Tributário Brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 301), diversamente do que ocorre com os impostos diretos (IR, IPVA e IPTU), nos quais a incidência jurídica coincide com a econômica, ou seja, aquele contribuinte que a lei indicou para satisfazer a obrigação tributária é o mesmo que irá suportar o ônus econômico do tributo.
Assim, o significado da palavra "desconto" melhor se amolda, sob o prisma penal, aos casos de tributos diretos em que há a responsabilidade por substituição tributária (nas hipóteses em que o responsável pela retenção na fonte não recolhe o tributo).
O termo "cobrado", por sua vez, deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos, mesmo aqueles realizados em operações próprias, visto que o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto.
Especificamente no que tange ao ICMS retido em operações próprias ou em substituição, o encargo é reembolsado dentro da cadeia de produção, de modo que o substituto e os substituídos não suportam, economicamente, o valor da exação que somente será arcado pelo consumidor.
Roque Carrazza considera que o ICMS é um tributo neutro, porquanto "ao cabo do processo econômico de produção, distribuição e comercialização da mercadoria e de prestação de serviços de transporte transmunicipal e de comunicação, quem acaba suportando, por inteiro, a carga econômica do ICMS é o consumidor final" (ICMS. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2012, p. 400).
Uniformizada a questão, as duas Turmas que compõem a Terceira Seção passaram a entender pela criminalização da conduta. Da Quinta Turma:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ARTIGO 2º, II, DA LEI N. 8.137/90. APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA. 1) TIPICIDADE DA CONDUTA. 2) DOLO ESPECÍFICO PRESCINDÍVEL. 3) AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Conforme se depreende de julgado da 3ª Seção desta Corte (HC 399.109/SC, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Terceira Seção, Dje 31/8/2018), a falta de recolhimento aos cofres públicos de ICMS discriminado em nota fiscal de venda de produtos a consumidor final configura o delito do art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, sendo certo que a declaração do ICMS devido ao Fisco não afasta a tipicidade. 2. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça - STJ, no julgamento do HC n.º 399.109/SC, firmou o entendimento de que o elemento subjetivo especial, no crime de apropriação indébita tributária (art. 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.137/90), é prescindível, sendo suficiente para a configuração do crime a consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido (AgRg nos EREsp 1.635.341/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, Dje 26/10/2018). 3. Agravo regimental desprovido (AgRg no REsp 1.767.899, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 15.10.19).
E da Sexta Turma:
A interpretação consentânea com a dogmática penal do termo "descontado" é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo "cobrado" deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo), de maneira que não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito (HC 556.551, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 5.5.20).
Após o julgamento do HC 399.109 pelo Superior Tribunal de Justiça, o tema foi alçado ao Supremo Tribunal Federal, que, em 18.12.19, manteve o entendimento do Tribunal da Cidadania:
Direito penal. Recurso em Habeas Corpus. Não recolhimento do valor de ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. Tipicidade. 1. O contribuinte que deixa de recolher o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço apropria-se de valor de tributo, realizando o tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990. 2. Em primeiro lugar, uma interpretação semântica e sistemática da regra penal indica a adequação típica da conduta, pois a lei não faz diferenciação entre as espécies de sujeitos passivos tributários, exigindo apenas a cobrança do valor do tributo seguida da falta de seu recolhimento aos cofres públicos. 3. Em segundo lugar, uma interpretação histórica, a partir dos trabalhos legislativos, demonstra a intenção do Congresso Nacional de tipificar a conduta. De igual modo, do ponto de vista do direito comparado, constata-se não se tratar de excentricidade brasileira, pois se encontram tipos penais assemelhados em países como Itália, Portugal e EUA. 4. Em terceiro lugar, uma interpretação teleológica voltada à proteção da ordem tributária e uma interpretação atenta às consequências da decisão conduzem ao reconhecimento da tipicidade da conduta. Por um lado, a apropriação indébita do ICMS, o tributo mais sonegado do País, gera graves danos ao erário e à livre concorrência. Por outro lado, é virtualmente impossível que alguém seja preso por esse delito. 5. Impõe-se, porém, uma interpretação restritiva do tipo, de modo que somente se considera criminosa a inadimplência sistemática, contumaz, verdadeiro modus operandi do empresário, seja para enriquecimento ilícito, para lesar a concorrência ou para financiar as próprias atividades. 6. A caracterização do crime depende da demonstração do dolo de apropriação, a ser apurado a partir de circunstâncias objetivas factuais, tais como o inadimplemento prolongado sem tentativa de regularização dos débitos, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de "laranjas" no quadro societário, a falta de tentativa de regularização dos débitos, o encerramento irregular das suas atividades, a existência de débitos inscritos em dívida ativa em valor superior ao capital social integralizado etc. 7. Recurso desprovido. 8. Fixação da seguinte tese: O contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990 (RHC 163.334, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 18.12.19).
A decisão da maioria dos Excelentíssimos Ministros que compõe a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal confirmou o entendimento pacífico deste Tribunal de Justiça, de que é crime a conduta praticada pelo Apelante, vide HC 4005218-05.2017.8.24.0000, Rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, j. 6.4.17; Ap. Crim. 0027865-55.2011.8.24.0038, Relª. Desª. Salete Silva Sommariva, j. 11.4.17; Ap. Crim. 0900582-47.2015.8.24.0020, Rel. Des. Norival Acácio Engel, j. 21.8.18; Ap. Crim. 0905239-07.2017.8.24.0038, Rel. Des. Ernani Guetten de Almeida, j. 14.8.18; Ap. Crim. 0900054-58.2017.8.24.0047, Rel. Des. Alexandre d'Ivanenko, j. 16.8.18; Ap. Crim. 0025880-37.2013.8.24.0020, Rel. Des. Luiz Antônio Zanini Fornerolli, j. 21.6.18; e HC 4015753-72.2018.8.24.0900, Relª. Desª. Cinthia Beatriz da S. Bittencourt Schaefer, j. 19.7.18.
Assim, declarado o tributo pelo sujeito passivo, era dever seu o recolhimento dos valores aos cofres públicos.
O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, por todas as suas Câmaras Criminais, delibera reiteradamente pela constitucionalidade do art. 2º, II, da Lei 8.137/90. Nesse sentido, dentre muitas: Apelações Criminais 0900191-44.2015.8.24.0036, Rel. Des. Ariovaldo Rogério Ribeiro da Silva, j. 9.8.18; 0003057-80.2014.8.24.0005, Rel. Des. Luiz César Schweitzer, j. 15.3.18; 0910550-81.2014.8.24.0038, Rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, j. 15.2.16; 0904143-59.2014.8.24; Relª. Desª. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt, j. 15.2.16; 0001734-34.2012.8.24.0062, Rel. Des. Volnei Celso Tomazini, j. 4.2.16; 0008165-10.2012.8.24.0022, Rel. Des. Ernani Guetten de Almeida, j. 28.1.16; 2013.014151-9, Rel. Des. Ricardo Roesler, j. 5.11.13; 2013.010555-1, 2014.082876-2, Relª. Desª. Marli Mosimann Vargas, j. 1º.12.15; 2015.046388-2, Rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho, j. 17.11.15; e 2015.064389-9, Rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 12.11.15.
Colhe-se desta Segunda Câmara Criminal:
I - A Constituição Federal de 1988 consagrou em solo pátrio as concepções garantistas há muito desejadas, relevando o papel do Poder Público como concretizador dos direitos fundamentais sociais e individuais, a fim de que se atinjam os objetivos irrogados para a República Federativa do Brasil no art. 3º da Carta Magna (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação). Tal desiderato só pode ser alcançado mediante o equilíbrio financeiro do governo, cuja principal fonte de receita advém da arrecadação de impostos, a ponto de tornar a sonegação fiscal ofensa a um bem jurídico relevantíssimo, de modo a justificar a incidência de normas penais no combate desta prática. III - Não há falar-se em comparações entre o direito privado, submetido às normas de coordenação e, por outro lado, o direito público, direcionado por normas de subordinação e no qual se encontram o direito tributário e o penal. Assim, a imposição de tributos em nada se relaciona com as relações negociais entre particulares, derivando do jus imperium e visando a possibilidade de realização pelo Estado das ações governamentais imprescindíveis à satisfação das necessidades da população. Nesta toada, inviável a equiparação da proibição da prisão civil por dívida, restrita às hipóteses previstas na Constituição Federal e expurgada como possibilidade de sanção por inadimplemento contratual em negócio jurídico firmado entre particulares, com a segregação decorrente da conduta fraudulenta do não repasse ao estado daquilo que lhe é devido por força de lei, e que, nos casos de tributos indiretos, é suportado pelo consumidor final, figurando o sujeito passivo da obrigação como mero repassador. IV - Resta claro que a conduta descrita no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90 não fere os preceitos constitucionais, pontualmente o da proibição de prisão civil por dívida garantido aos jurisdicionados no art. 5º, LXVIII, da CF/88, em virtude da importância sobrelevada do bem jurídico tutelado e das diferenças substanciais entre as relações negociais de particulares e as relações tributárias (Ap. Crim. 2011.049033-7, Relª. Desª. Salete Silva Sommariva, j. 6.12.11).
Também não há conflito com relação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto 678/92, que em seu art. 7, 7 estabelece que "Ninguém deve ser detido por dívida", excetuados "os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar":
MÉRITO. ALEGADA AFRONTA À CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS E À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, EM RAZÃO DA INEXISTÊNCIA DE PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. AFASTAMENTO. TIPICIDADE DA CONDUTA RECONHECIDA. DÉBITO DE NATUREZA TRIBUTÁRIA QUE NÃO SE CONFUNDE COM DÍVIDA DE NATUREZA CIVIL. INADIMPLEMENTO QUE PREJUDICA TODA A COLETIVIDADE. CONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO JÁ FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Ap. Crim. 0046957-48.2013.8.24.0038, Rel. Des. Leopoldo Augusto Brüggemann, j. 5.4.16).
Portanto, não há ofensa ao art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que veda a prisão por dívida civil, com exceção da inadimplência de obrigação alimentícia (uma vez que, jurisprudencialmente, excluiu-se a possibilidade quanto ao depositário infiel).
A respeito, cumpre mencionar entendimento encampado por Pedro Roberto Decomain, que, referindo-se ao art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, esclarece:
Poderia surgir discussão quanto à constitucionalidade desse inciso, diante da proibição da prisão civil por dívidas, inserida no artigo 5º, LXVII, da Constituição da República.
Ocorre que, aqui, não se está a punir, no inciso da lei de que se cuida, pura e simplesmente a inadimplência tributária, mas sim a prática de não ser recolhido ao verdadeiro destinatário o valor que o contribuinte cobrou, precisamente para esse fim, de um terceiro (op. cit. p. 457).
Mais adiante Decomain frisa que, "não se trata de prisão civil, mas sim de prisão de natureza punitiva, pela prática de um crime".
Com efeito, a vedação constitucional diz respeito à prisão de devedor civil com o único objetivo de compeli-lo ao pagamento do débito; ou seja, apenas a prisão decorrente diretamente de dívida civil é que é vedada pela Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal assim se pronunciou acerca da constitucionalidade do disposto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90:
É certo que o ordenamento constitucional brasileiro, em preceito destinado especificamente ao legislador comum, proíbe a instituição de prisão civil por dívida, ressalvadas as hipóteses de infidelidade depositária e de inadimplemento de obrigação alimentar (CF, art. 5º, LXVIII).
Observo, no entanto, que a prisão de que trata o art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, longe de reduzir-se ao perfil jurídico e à noção conceitual de prisão meramente civil, qualifica-se como sanção de caráter penal resultante, quanto à sua imponibilidade, da prática de comportamento juridicamente definido como ato delituoso.
A norma legal em questão encerra, na realidade, uma típica hipótese de prisão penal, cujos elementos essenciais permitem distingui-la, especialmente em função de sua finalidade e de sua natureza mesma, do instituto da prisão civil, circunstância esta que, ao menos em caráter delibatório, parece tornar impertinente a alegação de que o Estado, ao editar o art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90 (que define pena criminal, em decorrência da prática de delito contra a ordem tributária), teria transgredido, segundo sustentam os impetrantes, a cláusula vedatória inscrita no art. 5º, LXVII, da Carta Política, que proíbe - ressalvadas as hipóteses previstas no preceito constitucional em referência - a prisão civil por dívida. [...]
Assim sendo, tendo presente a relevante circunstância de que a norma legal, cuja constitucionalidade está sendo questionada incidenter tantum, definiu hipótese de sanção penal (penal criminal), por delito contra a ordem tributária, e considerando que o art. 2º, II, da lei n. 8.137/90, por isso mesmo, nenhuma prescrição veicula sobre o instituto da prisão civil por dívida, indefiro o pedido de medida liminar (HC 77.631, Rel. Min. Celso de Mello, j. 3.8.98).
Mais recentemente, o entendimento foi reiterado em sede de repercussão geral:
PENAL E CONSTITUCIONAL. CRIMES PREVISTOS NA LEI 8.137/1990. PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA. OFENSA AO ART. 5º, LXVII, DA CONSTITUIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. I - O Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral da matéria debatida nos presentes autos, para reafirmar a jurisprudência desta Corte, no sentido de que a os crimes previstos na Lei 8.137/1990 não violam o disposto no art. 5º, LXVII, da Constituição. II - Julgamento de mérito conforme precedentes. III - Recurso extraordinário desprovido (ARE 999.425 RG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 2.3.17).
Outro não é o posicionamento encampado pelo Superior Tribunal de Justiça:
"A omissão de recolhimento de contribuições ou de impostos é fato típico penal e não constitui dívida civil. III. O Pacto de San José da Costa Rica é de índole eminentemente civil, não sendo aplicado nos casos de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias" (REsp. 433.830/SC, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 28/04/2003) (RHC 19.647, Rel. Min. Félix Fischer, j. 4.10.07).
A conduta típica descrita no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/90 pune o contribuinte relapso que, dolosamente, omite-se em repassar ao Erário os recursos necessários para que este possa honrar com suas obrigações perante a sociedade, ilícito penal, portanto, de forma alguma tratando-se de prisão decorrente de dívida civil.
Nessa senda, "as condutas tipificadas pela Lei nº 8.137/90 visam à tutela da ordem tributária, relevada por procedimentos fraudulentos e gravosos que não se confundem com o simples inadimplemento de dívida fiscal" (STJ, RHC 33.334, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 23.2.16).
Enfim, "a jurisprudência dessa corte, de forma pacífica, entende como criminosa a conduta de não repassar o ICMS cobrado do consumidor final aos cofres públicos, hipótese que supera a mera inadimplência fiscal" (TJSC, Ap. Crim. 2012.090122-8, Relª. Desª. Salete Silva Sommariva, j. 20.5.14).
2. Ao contrário do sustentado no apelo, o dolo com que atuou o Recorrente é facilmente depreendido de suas condutas, pois era responsável pelos negócios envolvendo a empresa e deliberadamente deixou de adimplir tributos devidos.
O art. 18, I, do Código Penal positiva que o crime é doloso "quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo".
Disso decorre que, sempre que as consequências do agir forem conscientes e com vontade de causar um resultado, uma vez configurado este, estar-se-á diante de um crime doloso.
Não se exige, para a caracterização do delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, dolo específico em fraudar o Fisco, porquanto se trata de crime formal em que o elemento subjetivo é retirado da simples conduta de não recolher o tributo aos cofres públicos. Ensina Kiyoshi Harada que "O tipo subjetivo esgota-se apenas na transgressão da norma incriminadora, no dolo genérico" (Crimes contra a ordem tributária. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 252).
Extrai-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 2°, INCISO II, DA LEI N. 8.137/90). ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. IRRELEVÂNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. "'O tipo penal previsto no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990 não exige elemento subjetivo específico, mas apenas o ato voluntário de deixar de repassar ao fisco o valor do tributo descontado ou cobrado de terceiro na qualidade de sujeito passivo da obrigação, ainda que declarado, sendo irrelevante o especial fim de se apropriar de tal numerário ou de obter proveito particular com o crime' (AgRg no AREsp n. 772.503/SC, Sexta Turma, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe de 29/2/2016)" (AgRg no REsp 1.631.400/SC, Rel. Ministro Félix Fischer, Quinta Turma, DJe 18/10/2017). 2. Agravo regimental desprovido (AgRg no HC 651.319, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 23.11.21).
E:
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC n.º 399.109/SC, firmou o entendimento de que o elemento subjetivo especial, no crime de apropriação indébita tributária (art. 2.º, inciso II, da Lei n.º 8.137/90), é prescindível, sendo suficiente para a configuração do crime a consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo devido (AgRg nos EREsp 1.635.341, Relª. Minª. Laurita Vaz, j. 10.10.18).
Mais:
O tipo penal previsto no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990 não exige elemento subjetivo específico, mas apenas o ato voluntário de deixar de repassar ao fisco o valor do tributo descontado ou cobrado de terceiro na qualidade de sujeito passivo da obrigação, ainda que declarado, sendo irrelevante o especial fim de se apropriar de tal numerário ou de obter proveito particular com o crime (AgRg no AREsp 772.503, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 18.2.16).
Guia este Tribunal:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL (ART. 2º, II, LEI N. 8.137/1990), POR DUAS VEZES. SENTENÇA CONDENATÓRIA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITO. RECURSO DA DEFESA. MATERIALIDADE COMPROVADA POR NOTIFICAÇÃO FISCAL E DEMAIS DOCUMENTOS ACOSTADOS NOS AUTOS. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA DIANTE DA AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO. AGENTE QUE NÃO PRATICOU SONEGAÇÃO FISCAL COM A INTENÇÃO DE FAZER PRÓPRIO O DINHEIRO QUE PERTENCE AO FISCO. INDIFERENÇA. TIPO PENAL QUE INDEPENDE DE DOLO ESPECÍFICO. DOLO GENÉRICO CONFIGURADO PELA AUSÊNCIA DE REPASSE DE VALORES. [...] Prestigia-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: "Já é pacífico o entendimento de que para se caracterizar a conduta prevista nos arts. 1.º, IV e 2.º, II da Lei n. 8.137/90, exige-se apenas o dolo genérico, não sendo necessário demonstrar o animus de se obter benefício indevido" (Recurso Especial n. 480.395/SC, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, j. em 11.3.2003) (Ap. Crim. 0010288-30.2012.8.24.0038, Relª. Desª. Hildemar Meneguzzi de Carvalho, j. 30.8.18).
Também:
TESE DE ATIPICIDADE DA CONDUTA E AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. IMPOSSIBILIDADE. AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE COMPROVADAS. ICMS DECLARADO MAS NÃO RECOLHIDO. CONDUTA CONFIGURADA. DOLO EVIDENCIADO. CONDENAÇÃO MANTIDA. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90. INOCORRÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 5º, INCISO LXVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL. CONDUTA PENALMENTE TÍPICA. CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA (Ap. Crim. 2013.029688-3, Rel. Des. José Everaldo da Silva, j. 16.12.14).
Está configurado, portanto, o elemento subjetivo do tipo.
Aliás, não há dúvida de que o Apelante agiu de modo contumaz, tanto que apenas neste feito foi condenado por cinco sonegações, verificando-se, em consulta ao eproc1G, que foi condenado em Primeiro Grau por outras sete condutas semelhantes (autos 0900032-11.2017.8.24.0011).
A propósito:
DELITO COM DOLO GENÉRICO, QUE DISPENSA A INTENÇÃO DE FRAUDAR A FAZENDA PÚBLICA, BASTANDO A SIMPLES OMISSÃO. HABITUALIDADE DEVIDAMENTE DEMONSTRADA. APELANTE QUE, NA ADMINISTRAÇÃO DA MESMA EMPRESA, COMETEU O DELITO POR DOZE VEZES, BEM COMO CONTA COM OUTRAS AÇÕES PENAIS COM IDÊNTICO MODUS OPERANDI. RECENTE DECISÃO DO STF CONFIRMANDO A TIPICIDADE DA CONDUTA DE NÃO RECOLHIMENTO DE ICMS (Ap. Crim. 5021653-15.2020.8.24.0038, Rel. Des. Ernani Guetten de Almeida, j. 14.12.21).
3. Eventual dificuldade financeira da empresa, como causa do não recolhimento do tributo, revela-se incapaz de assegurar a absolvição pela aplicação das excludentes de estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa.
Nem sequer há prova disso nos autos. O único elemento de prova neste sentido foram os interrogatórios dos Acusados; não há provas documentais (livros contábeis, processos judiciais, protestos em cartório, etc.) que confirmem tais alegações.
Ademais, partindo de uma visão restrita, pode-se dizer que o sujeito passivo do delito de que cuidam os autos é o Estado representado pela Fazenda Pública, ofendida nos seus interesses relacionados com a arrecadação dos tributos devidos. Porém, com base na ampliação da percepção do bem jurídico tutelado, é possível afirmar que o sujeito passivo é, na verdade, a coletividade difusa de cidadãos submetidos ao sistema tributário violado, que são de fato lesados pelo ilícito, como destaca Emerson de Lima Pinto:
A justificação dos crimes contra a ordem tributária encontram-se no fato de que a conduta criminosa, além de causar um prejuízo imediato a integridade patrimonial do Erário Público (lesando a função pública da arrecadação), acaba por obstaculizar a realização do valor constitucional da solidariedade de todos os cidadãos na contribuição da manutenção dos gastos públicos e dificultando a efetivação do Estado Democrático de Direito (A criminalidade econômico-tributária: a (des)ordem da lei e a lei da (des)ordem: por uma (re)legitimação do direito penal no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 75).
Com base em uma leitura constitucional do direito penal, a sua legitimação, no seio do Estado Democrático de Direito, passa por uma maior proteção aos bens jurídicos fundamentais à realização dos fins deste, conforme preconiza Lênio Streck:
Não há dúvida, pois, que as baterias do Direito Penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas preferentemente para o combate dos crimes que impedem a realização dos objetivos constitucionais do Estado e aqueles que protegem os direitos fundamentais e os delitos que protegem bens jurídicos inerentes ao exercício da autoridade do Estado (desobediência, desacato), além das condutas que ferem a dignidade da pessoa, como os crimes de abuso de autoridade, sem falar nos bens jurídicos de índole transindividual como os delitos praticados contra o meio ambiente, as relações de consumo, crimes tributários, etc (A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 32, n. 97, p. 184, mar. 2005).
O dever constitucional de pagar impostos decorre de uma necessidade lógica do Estado e da sociedade, obrigados constitucionalmente à realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito. Para tanto é preciso que o Estado brasileiro tenha respaldo econômico-financeiro, o que ocorre com a arrecadação fiscal. Assim, a sonegação de impostos afeta, direta e indiretamente, os objetivos constitucionais do Estado brasileiro, na medida em que desestrutura economicamente o aparelho governamental voltado à concretização daqueles direitos e garantias.
Emerson de Lima Pinto sustenta, como decorrência do dever constitucional de pagar impostos, a existência de uma obrigação constitucional de criminalização das condutas tendentes a sonegá-los:
Os crimes, por exemplo, contra a ordem tributária, simbolizam perfeitamente situações que são caracterizadas por um grave dano ou lesividade social intensa, uma vez que atingem toda a sociedade, podendo seus efeitos ser coletivos, difusos e supra-individuais. A sociedade "destinatária" de prestações positivas por parte do Estado, por ocasião da ação delituosa dos desviantes, deixará de promover as prestações positivas afirmadas constitucionalmente, ao (des)penalizar condutas delituosas ou mantendo um (in)suficiente Direito Penal garantidor dos bens jurídico-penais como a ordem econômica e tributária (op. cit., p. 60).
Por esse motivo, é necessário reforçar e estabelecer com precisão a ligação entre a arrecadação fiscal e a realização dos objetivos constitucionais do Estado brasileiro. Recorre-se à lição de Luciano Feldens:
Diante da problemática específica que se nos é apresentada, a questão por excelência passa a ser: de que forma se alcançaria essa desejável maximização das expectativas materiais dos cidadãos, notadamente aquelas respeitantes aos direitos sociais que lhes são constitucionalmente assegurados (v. g., educação, saúde, segurança, previdência social)? Como pode o Estado cumprir com as funções - mínimas que sejam - que lhes são acometidas, fazendo chegar aos excluídos do "sistema" esse mínimo de democracia substancial? Em nosso contexto político-socioeconômico, em que os meios de produção de riqueza estão acometidos à iniciativa privada, há uma única e singela maneira: a arrecadação fiscal (Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 86).
Partindo da constatação de que a ordem constitucional vigente projeta um modelo econômico para a sociedade e o Estado brasileiro, capaz de concretizar os direitos sociais nela previstos e implementar a justiça social almejada pelo Estado Democrático de Direito, e de que esse modelo operacionaliza-se por meio da arrecadação fiscal, pode-se afirmar que a criminalidade econômico-financeira impede a realização desses objetivos, daí carecer ser censurada exemplarmente.
Ademais, a lógica da tributação incidente no caso de ICMS, conforme destacado, mostra que o imposto foi suportado pelo consumidor final e, apesar disso, não foi repassado ao Estado pelo Denunciado.
A propósito, vale novamente citar ensinamento de Andreas Eisele:
A opção de equivalência entre os interesses dentre os quais o sujeito realiza a opção de comportamento lesivo(a), deve ser auferida casuisticamente.
Portanto, apenas pode justificar a prática da conduta delitiva a destinação do produto do crime a uma finalidade socialmente mais relevante que a função do patrimônio público (financiamento das atividades estatais de prestação de tutelas sociais) o que não ocorre quando os recursos evadidos são direcionados (ainda que em parte) ao pagamento de fornecedores, financiamentos ou outros compromissos empresariais (op. cit., p. 88).
Orienta há muito o Superior Tribunal de Justiça:
APELAÇÃO CRIMINAL. SONEGAÇÃO FISCAL. ICMS. TRIBUTO DECLARADO MAS NÃO RECOLHIDO. DIFICULDADES FINANCEIRAS. IRRELEVÂNCIA. O ICMS é tributo indireto, daqueles em que o contribuinte de direito transfere a carga tributária ao consumidor final (contribuinte de fato), atuando como mero repassador ao Fisco do montante apurado. Infringe a lei tributária quem, sujeito ao pagamento do tributo, não o satisfaz no tempo, forma e lugar determinado. O não-recolhimento de ICM declarado, que integrou o preço da mercadoria vendida, se não recolhido aos cofres públicos, tipifica a figura penal (REsp. 8.584, Rel. Min. Garcia Vieira, j. 17.4.91).
Acolher a tese de que dificuldades financeiras autorizam o inadimplemento do tributo é legalizar que, nas mesmas condições, qualquer pessoa possa investir impunemente contra o patrimônio alheio como forma de arrostar tal percalço, o que se revela absurdo e intolerável.
Repita-se: fosse precária a situação financeira da empresa, nem assim se justificaria a atividade criminosa empreendida, pois grande parte da população sofre com o desemprego e a pobreza e nem por isso pratica delitos.
Com efeito, "não caracteriza excludente de culpabilidade a notícia de que dificuldades negociais e erros gerenciais causaram as omissões nos deveres tributários da empresa" (TRF5, Ap. Crim. 200783000178075, Rel. Des. Fed. Lazaro Guimarães, j. 28.5.09).
Orienta a Seção Criminal deste Tribunal de Justiça:
EMBARGOS INFRINGENTES. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/03. SUPOSTA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA ORIUNDA DE DIFICULDADES FINANCEIRAS. INADMISSIBILIDADE, NA ESPÉCIE. ICMS. IMPOSTO INDIRETO. AGENTE QUE MANTEVE A RENTABILIDADE DA EMPRESA À MARGEM DA LEI, CUSTEANDO-A COM A APROPRIAÇÃO DOS TRIBUTOS QUE LHE ERAM PAGOS PELOS CONTRIBUINTES. CONDENAÇÃO MANTIDA. PREVALÊNCIA DOS VOTOS VENCEDORES. RECURSO NÃO PROVIDO. 1 O ICMS trata-se de um imposto indireto, que já foi pago pelo consumidor final, mas que não foi repassado ao Fisco por aquele que tinha o dever. Logo, tendo o valor do tributo à sua disposição, mas não o repassando ao Fisco no prazo legal, configurada está a conduta prevista no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90. 2 "[...] 'dificuldades financeiras' não são justificativa plausível para o não-recolhimento do tributo pelo apelante, pois este é, na verdade, pago pelo consumidor final, não pelo comerciante, que se constitui em mero repassador, isto é, transitoriamente, pelo prazo que a lei estabelece, mantém a 'posse' do dinheiro que pertence ao Estado" (TJSC, Apelação Criminal n. 2003.021309-0, Des. Roberto Lucas Pacheco). 3 "O lucro da empresa não pode, portanto, ser gerado por sonegação ou falcatruas, nem à custa dos concorrentes. A concorrência desleal, além do dano ao erário público, desfigura o mais eficaz instrumento de mercado - a competição empresarial" (Marcílio Marques Moreira) (Emb. Inf. 2014.086110-2, Rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho, 25.3.15).
Dos Órgãos Fracionários:
O contribuinte de fato do ICMS é o consumidor final, sendo a pessoa jurídica, por obrigação legal, a responsável por efetuar a cobrança desse tributo e repassá-lo ao fisco. A fragilizada situação financeira da empresa não é motivo suficiente para afastar a obrigação tributária de recolhimento do tributo, notadamente porque não há decréscimo monetário da empresa para o repasse, já que o valor referente ao tributo já foi devidamente cobrado (Ap. Crim. 0905653-73.2015.8.24.0038, Rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 11.8.16).
Ainda:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL (ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90 C/C ART. 71, CAPUT, DO CP). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. [...] MÉRITO. MATERIALIDADE E AUTORIA DEVIDAMENTE EVIDENCIADAS. CONFISSÃO DO ACUSADO E DEMAIS DOCUMENTOS QUE ATESTAM A SUA RESPONSABILIDADE PELOS ATOS DE ADMINISTRAÇÃO DA EMPRESA. ADEMAIS, A ALEGAÇÕES DE DIFICULDADES FINANCEIRAS E DE AUSÊNCIA DE DOLO DA CONDUTA NÃO SÃO SUFICIENTES PARA DESCARACTERIZAR O DELITO. CRIME FORMAL. IMPOSTO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS (ICMS) QUE, POR SER TRIBUTO INDIRETO, ONERA O CONSUMIDOR FINAL (CONTRIBUINTE DE FATO). FALTA DE RECOLHIMENTO QUE PREJUDICA TODA A COLETIVIDADE (Ap. Crim. 2012.079699-5, Rel. Des. Volnei Celso Tomazini, j. 10.12.13).
Em face disso, deve ser mantida a condenação de Vilmar Luis Sdrigotti pela prática do delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, por cinco vezes, em continuidade delitiva.
4. Com relação à pena de multa, é sabido que os Bônus do Tesouro Nacional - BTN foram criados pela Lei 7.777/89 para fazerem parte das normas de ajustamento do Programa de Estabilização Econômica, e destinavam-se "a prover o Tesouro Nacional de recursos necessários à manutenção do equilíbrio orçamentário ou para a realização de operações de crédito por antecipação da receita, observados os limites legalmente fixados" (art. 5º), bem como que o art. 8º, parágrafo único, da Lei 8.137/90, estipula que, nos crimes contra a ordem tributária, "O dia-multa será fixado pelo juiz em valor não inferior a 14 (quatorze) nem superior a 200 (duzentos) Bônus do Tesouro Nacional BTN".
Entretanto, com as novas regras para a desindexação da economia trazidas pela Lei 8.177/91, o BTN foi extinto a partir de 1º.2.91 (art. 3º, inc. II).
Desde então, o BTN não se presta mais como parâmetro para a individualização dos dias-multa, mas isso não conduz à não aplicação da multa-tipo, apenas deve cada dia-multa ser valorado nos termos do art. 49, § 1º, do Código Penal.
O Superior Tribunal de Justiça orienta que "A extinção da BTN, a que faz referência o artigo 8º, parágrafo único, da Lei n° 8.137/90, não conduz à inaplicabilidade da pena de multa, pois tratando-se dos crimes contra a ordem tributária, aplica-se, subsidiariamente, a regra geral contida no artigo 49, § 1º do Código Penal" (AgRg nos EDcl no REsp 1.789.596, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 19.5.20).
Na mesma linha, desta Corte:
ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DESSA REPRIMENDA EM RAZÃO DA EXTINÇÃO DO INDEXADOR BÔNUS DO TESOURO NACIONAL (BTN), PREVISTO NO ART. 8º DA LEI N. 8.137/90. INOCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DOS PARÂMETROS PREVISTOS NO CÓDIGO PENAL PARA ESTIPULAÇÃO DO VALOR DOS DIAS-MULTA. PRECEDENTES DA CORTE SUPERIOR E DESTE TRIBUNAL. RECURSO DESPROVIDO (Ap. Crim. 0901169-28.2017.8.24.0011, Rel. Des. Alexandre d'Ivanenko, j. 8.7.21).
Ante o exposto, voto no sentido de conhecer e desprover o recurso.

Documento eletrônico assinado por SÉRGIO RIZELO, Desembargador Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 1848260v25 e do código CRC e5689351.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): SÉRGIO RIZELOData e Hora: 22/2/2022, às 14:59:57

 

 












Apelação Criminal Nº 0900090-77.2018.8.24.0011/SC



RELATOR: Desembargador SÉRGIO RIZELO


APELANTE: VILMAR LUIS SDRIGOTTI (ACUSADO) ADVOGADO: THIAGO YUKIO GUENKA CAMPOS (DPE) APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR)


EMENTA


APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. FALTA DE RECOLHIMENTO DE ICMS EM CONTINUIDADE DELITIVA (LEI 8.137/90, ART. 2º, II, C/C O 71, CAPUT, DO CP). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DO ACUSADO.
1. ATIPICIDADE. OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA PRÓPRIA. INADIMPLÊNCIA FISCAL. CONVENCIONALIDADE E CONSTITUCIONALIDADE. 2. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. DOLO GENÉRICO. AÇÃO CONSCIENTE E VOLUNTÁRIA. 3. DIFICULDADES FINANCEIRAS. IMPOSTO COBRADO OU DESCONTADO DE TERCEIRO. 4. MULTA-TIPO. VALOR DO DIA-MULTA. BÔNUS DO TESOURO NACIONAL (LEI 8.137/90, ART. 8º, PARÁGRAFO ÚNICO). EXTINÇÃO DO INDEXADOR (LEI 8.177/91). APLICAÇÃO DO CÓDIGO PENAL (CP, ART. 49, § 1º).
1. O ICMS inclui-se na categoria de tributo indireto, na qual o ônus da incidência tributária é transferido pelo contribuinte a terceiro, por meio da sua inclusão no preço da mercadoria ou no valor da prestação de serviços, de modo que, ao cobrá-lo, declará-lo e não repassá-lo aos cofres públicos, o sujeito passivo pratica a elementar de não recolhimento de tributo "descontado ou cobrado" prevista no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, seja em operações próprias ou por substituição tributária, ao passo que a criminalização da conduta não padece de inconvencionalidade ou inconstitucionalidade e não se assemelha à prisão civil por dívida, porquanto é penalmente relevante e não se equipara à mera inadimplência fiscal.
2. A ação livre e consciente de deixar de recolher o valor do tributo declarado à Receita e descontado ou cobrado de terceiros é suficiente para a caracterização do elemento subjetivo exigido para a configuração do crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, cuja ocorrência prescinde de dolo específico.
3. Em razão da natureza do ICMS, que é incluído no preço cobrado na venda de mercadoria ou na prestação de serviço, sendo obrigação da pessoa jurídica que o cobra unicamente remeter ao erário o que foi repassado ao consumidor, o simples não recolhimento do tributo declarado aperfeiçoa o delito, e a alegação de que a empresa passava por dificuldades financeiras não enseja o reconhecimento da atipicidade da conduta, especialmente se não comprovada cabalmente tal fragilidade.
4. A extinção do Bônus do Tesouro Nacional - BTN não torna inaplicável a pena de multa-tipo prevista cumulativamente à privativa de liberdade para os crimes contra a ordem tributária, passando os dias-multa a serem individualizados de acordo com os parâmetros da regra geral prevista no artigo 49, § 1º do Código Penal.
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

ACÓRDÃO


Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Egrégia 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, conhecer e desprover o recurso, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 22 de fevereiro de 2022.

Documento eletrônico assinado por SÉRGIO RIZELO, Desembargador Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico https://eproc2g.tjsc.jus.br/eproc/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 1848261v7 e do código CRC e34a5a62.Informações adicionais da assinatura:Signatário (a): SÉRGIO RIZELOData e Hora: 22/2/2022, às 14:59:57

 

 










EXTRATO DE ATA DA SESSÃO ORDINÁRIA POR VIDEOCONFERÊNCIA DE 22/02/2022

Apelação Criminal Nº 0900090-77.2018.8.24.0011/SC

RELATOR: Desembargador SÉRGIO RIZELO

PRESIDENTE: Desembargadora SALETE SILVA SOMMARIVA

PROCURADOR(A): GERCINO GERSON GOMES NETO
APELANTE: VILMAR LUIS SDRIGOTTI (ACUSADO) ADVOGADO: THIAGO YUKIO GUENKA CAMPOS (DPE) APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR)
Certifico que este processo foi incluído na Pauta da Sessão Ordinária por Videoconferência do dia 22/02/2022, na sequência 29, disponibilizada no DJe de 07/02/2022.
Certifico que o(a) 2ª Câmara Criminal, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:A 2ª CÂMARA CRIMINAL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, CONHECER E DESPROVER O RECURSO.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador SÉRGIO RIZELO
Votante: Desembargador SÉRGIO RIZELOVotante: Desembargador NORIVAL ACÁCIO ENGELVotante: Desembargadora HILDEMAR MENEGUZZI DE CARVALHO
FELIPE FERNANDES RODRIGUESSecretário